terça-feira, 6 de agosto de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 16

Onegaishimasu! 

(^_^) 

Na minha quinta postagem, tratando do termo “Karate-dō”, escrevi: 
“Não esqueça que a tradução individual de cada kanji, e da palavra como um todo, embora tenha um significado literal, sempre abarca uma “ideia”” e que para que esta ideia seja entendida a questão “contexto é fundamental.” 
E complementei: 
“Sendo assim, em outro momento, voltarei a este assunto para abordar estas questões.” 
Então... o “outro momento” chegou! \(^_^)/ 

Estamos “carecas” de saber que “Karate-dō” quer dizer “Via” ou “Caminho das mãos vazias”. Embora nos últimos anos tenham aparecido algumas traduções alternativas por aí... 

Porém, como para entender traduções “contexto” é fundamental... falemos um pouco sobre a história do Karate-dō a fim de entender o plano de fundo em que o assunto está inserido. 

Vamos aos fatos... 

Fato 1 - O Japão invade Ryūkyū em 1609. O arquipélago era um ponto estratégico e com o poderio Satsuma naquela época, era realizável. 

Fato 2 - O Japão, como força invasora, proíbe naturalmente a continuação do idioma, da cultura e artes nativas de Ryūkyū, passando a obrigar o povo nativo a se "tornar japonês". 

Fato 3 - O Japão anexa Ryūkyū, sob a designação "japonesa" de "Okinawa", em 1879, transformando o conjunto de ilhas em uma de suas prefeituras. 

Alguns questionamentos que saltam a vista... 

Sendo uma ilhota lá no meio do oceano, cuja a cultura foi suprimida à força, da para acreditar - honestamente - que os japoneses tratam o povo e a cultura de Okinawa como iguais?! 

Da para acreditar que uma arte que vem "de lá daquelas ilhotas", pode ser considerada uma arte tradicional do "Grande Japão"? 

Nos dias de hoje, Okinawa é uma das prefeituras mais pobres do Japão. O tratamento, talvez por coincidência, continua diferenciado, passado todos estes anos. 

Não se trata de "como" foi desenvolvido o Karate, mas onde foi desenvolvido. 

Todos sabem das influências chinesas, das artes nativas, etc.. Mas o assunto tabu é "como os japoneses enxergam o Karate" e este sempre foi e sempre vai ser de Okinawa (Ryūkyū). 

E é por isso que o Karate não foi, não é e, acredito eu, que nunca venha ser tratado como uma arte tradicional japonesa. Porque se trata de uma questão política e não de evolução de uma arte. 

Não se pode negar, por outro lado, os louváveis esforços de todos os mestres de Okinawa em promover a arte, mas no Japão de hoje, o Karate ainda é de Okinawa. 

Sabe qual é o problema disso tudo? É que nenhum instrutor se dá ao trabalho de verificar a história de Ryūkyū a partir da "invasão" japonesa. Isso mesmo! Não ter medo de falar com todas as letrinhas: I-N-V-A-S-Ã-O. E por quê? Porque é muito mais fácil fechar aos olhos para alguns "detalhes históricos" quando estes estão a nosso favor do que arranjar controvérsia com as organizações "japonesas" que orientam o Karate-dō dos dias de hoje. 

Basicamente coloque-se no lugar da força invasora que se considera superior e, a partir daí, tire as suas conclusões. 
A “japanização” da cultura de Okinawa mostra claramente que os japoneses consideravam sua própria cultura como superior. [...] Todas as memórias do passado sobre um reino independente e sua própria cultura única tiveram que ser esquecidas. Cada marca que restou da China na cultura de Okinawa teve que ser apagada. Os cursos de chinês foram suspensos e substituídos pelos da língua japonesa. [...] A “japanização” incluiu a abolição dos hábitos tradicionais e a introdução daqueles das principais ilhas japonesas. (SWENNEN, 2006. p. 54) 

O “Kara” de Karate-dō 

Quando o Karate era praticado em Okinawa tinha a denominação Tō-de, que em kanji era escrito da seguinte maneira 唐手, ideogramas que mais tarde passaram a ser lidos como “Karate”. 
A designação Karate, era utilizada na instrução escolar por volta dos anos [...] (1901 e 1902), escrevia-se Tō-de, mas começou-se a ler Karate. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)  
Não é fácil dominar a língua japonesa [...] caracteres diferentes podem ter exatamente a mesma pronúncia, e um mesmo caractere pode ter pronúncias diferentes, dependendo do uso. A expressão Karate é um exemplo excelente. [...] Há dois caracteres bem diferentes pronunciados Kara; um significa “vazio”, e o outro é o caractere chinês que se refere à dinastia Táng e que pode ser traduzido por “chinês”. (FUNAKOSHI, 2010, p. 45) 
Como já vimos, os ideogramas japoneses têm três formas de leitura: On'yomi, Kun'yomi e Nanori. Portanto, a palavra Tō-de, não foge à regra. 

Por quê? 
  1. Porque a expressão está escrita com "ideogramas". 
  2. Porque na época do início do Karate no Japão, Okinawa já era território japonês. 
  3. Considerando os dois primeiros pontos, o Tō-de estava sob a jurisdição japonesa. 
Portanto, vamos ver os ideogramas de Tō-de: 

唐 
  • On'yomi: Tō 
  • Kun'yomi: Kara 
  • Nanori: Karo, Tan 
  • Tradução: Dinastia Chinesa Táng, China. 

手 
  • On'yomi: Shu, Zu. 
  • Kun'yomi: Te 
  • Nanori: Não há
  • Tradução: Mão(s). 
Assim sendo, a tradução de Tō-de (唐手) era, de fato, "Mão(s) chinesa(s)" e uma das suas formas de leitura era "Karate" (唐手). 

Quando o Karate foi levado de Okinawa para as ilhas principais do Japão, por Funakoshi Gichin, naturalmente, para a arte ser aceita no restante do país, aceita pela sociedade japonesa, a designação "Mão(s) chinesa(s)" estava totalmente fora de questão
Kara (de Karate) era o antigo nome que os japoneses davam a China. Devido a este fato, os japoneses pensavam que o Karate era uma arte estrangeira. (MABUNI; NAKASONE, 2002, p. 25)  
Se escrevêssemos "Nippon Budō Karate" passaria a ter o significado de "As técnicas chinesas (pertencentes ao) Budō do Japão". O que resultaria numa contradição que prejudicava pela falta de bom senso. A partir deste ponto foi necessária a alteração para os ideogramas 空手, Karate. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44) 
Foi obrigatório, então, alterar o ideograma 唐 [Kara] para outro que retirasse o sentido "chinês" e foi assim que apareceu o ideograma 空 [Kara] "vazio" no nome da arte. 

É justamente aqui que começam as "especulações" e "enganos" sobre o significado deste ideograma na palavra “Karate”, pois “Kara” também significa "céu", "a abóbada celeste", "o firmamento". 

O autor da escolha do kanji e posterior mentor de uma explicação para a seleção foi Funakoshi Gichin. 
A Universidade Keio constituiu um grupo de pesquisa do Karate, e eu então pude sugerir que a arte recebesse o nome de Dai Nippon Kenpō Karate-dō, utilizando o caractere para “vazio” (空). (FUNAKOSHI, 2010, p. 46) 
Vamos a uma ginástica mental... 

E se eu, Denis, quisesse colocar este assunto no "plano divino"? 

Quem pode dizer que a tradução de “Kara” não é mesmo "céu, celestial"?... e que alguém se enganou no meio de traduções e interpretações do sentido original quando transcreveu como "vazio". Nada impede que eu também tenha razão! O correto seria, então, "Mão(s) celestiai(s)" tendo um sentido de algo muito mais divino ainda! Podendo, inclusive, ser traduzido como "Mão(s) divina(s)", sem problema algum... 

Alguém, ao ler minha “ginástica mental”, pode dizer: “que teoria absurda!” 

Da mesma forma que esta minha "divagação" é mais do que evidente, menos evidentes são as teorias, misticismos e afirmações que começaram a ser espalhadas, adicionando ao ideograma “Kara” um caráter "divino"... relacionado ao "Zen Budismo". 

Funakoshi Gichin chega as ilhas principais do Japão e depara-se com a discriminação/não aceitação da arte das “Mão(s) chinesa(s)”, precisa resolver este impasse. Na língua japonesa, apesar de escrito como Tō-de os kanji já eram lidos como Karate há quase duas décadas. Funakoshi Gichin precisava de um novo nome para a arte e para isso busca um caractere alternativo que tirasse o sentido “chinês” do nome, assim o “vazio”, o “Kara”, aparece. O problema parece estar solucionado, porém, Funakoshi Gichin parece ter feito isso de forma isolada e foi por isso que surgiram diversas críticas a sua intervenção. 
Minha sugestão provocou inicialmente explosões violentas de crítica tanto em Tóquio como em Okinawa. (FUNAKOSHI, 2010, p. 46)  
O nome não foi mudado facilmente. Semana após semana, apareciam artigos nos jornais de Okinawa, escritos por especialistas de Okinawa em artes marciais, querendo saber o porquê da mudança. (NAKAYAMA, 2009, p. 131) 
Sendo Funakoshi Gichin um representante... e não o representante da arte... que autoridade tinha para isso perante os demais mestres? 
Devido ao abandono da utilização dos ideogramas “Karate”, o trabalho árduo dos ancestrais foi perdido. Consequentemente, nos dias de hoje o ideograma “Kara” é ainda algo pouco compreendido e deveria ser, repetidamente, alvo de maior atenção. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44) 
Outro ponto, é que Funakoshi Gichin precisava fundamentar a mudança. Para isso, outra vez a questão pessoal (era poeta e budista) se manifesta quando sua explicação do “por que” do “Kara” recaí sobre as escrituras budistas. 
Os estudantes de Karate-dō têm como meta não só aperfeiçoar a arte de sua escolha, mas também esvaziar o coração e a mente de todo desejo e vaidade terrenos. Lendo as escrituras budistas, encontramos afirmações como “shiki soku zekū” e “kū soku zeshiki”, que literalmente significam “forma e cor, tudo é vazio”, “vazio, tudo é forma e cor”. O caractere kū, que aparece nas duas admoestações e que pode também ser pronunciado kara, é em si mesmo verdade. [...] Acreditando com os budistas que é a vacuidade, o vazio, que jaz no coração de toda matéria e na verdade de toda a criação, persisti resolutamente no uso daquele caractere particular para indicar a arte marcial. (FUNAKOSHI, 2010, p. 47) 
Vamos à raiz da questão... 
"Vazio"?! "Budismo"?! O ideograma “Kara” só foi alterado por imposição japonesa! Originalmente, “Karate” era “Técnicas chinesas” e nada mais! A alteração foi feita apenas para ajustar o nome da arte de Okinawa às exigências da Dai Nippon Butokukai. Foi só por isso, e não para ajustar sentidos transcendentais que foi feita a alteração do ideograma. (GOULART, 2011) 
Mas se foi assim, por que Funakoshi Gichin não disse isso claramente? Simples, a ideia era a continuidade da arte e não sua extinção. Imaginem quanto tempo a arte duraria se ao invés do que o mestre fez tivesse contado sobre as pressões e discriminações... tipo “desde que cheguei as ilhas principais do Japão sofro discriminação por parte dos órgãos oficiais e da sociedade japonesa por ensinar uma arte cujo os kanji são entendidos como ‘Mão(s) chinesa(s)’. Então, para tentar amenizar estas ‘pressões e discriminações’, me vi obrigado a mudar o nome da arte”. 

Dúvidas até aqui?!

Caso tenha chegado até este ponto do texto, alguém com certeza pensou “Este cara está louco”... vejamos... 

Na realidade, até posso estar louco... mas tem mais gente louca a meu lado (^_^)...
Nos últimos tempos o Karate [...] foi desenvolvido de uma forma extraordinária. No entanto, a publicidade fácil e enganosa tem terminado por ocultar do público a verdadeira realidade da sua prática. (MABUNI; NAKASONE, 2002. p. 25)  
O Karate não se desenvolveu a partir do Budismo. (ITOSU apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 22).  
O guerreiro de Okinawa mantém seu espírito tranquilo [...] “De onde vem esta fé?” O Budismo não tem ali (em Okinawa) profundas raízes como no resto do Japão. (HARAKI apud MABUNI; NAKASONE, 2002, p. 32)  
Não havia na arte de Ryūkyū NENHUM significado obscuro, subentendido ou latente, nenhum significado "budista" ou transcendental fazia parte da questão e da arte originais! (GOULART, 2011)  
Recentemente muitas pessoas se voltaram para o Zen e muitos livros são publicados sobre isso; no entanto, é uma farsa. [...] Claro que o Zen pode ser indicado na luta. Mas qual é o sentido do Zen? [...] Se você seguir o caminho Zen, você terá o vazio em sua mente enquanto faz Kumite. [...] sem emoções, sem pensamentos sobre passado e futuro. Isso é Zen. É por isso que as pessoas que não têm a experiência em lutas sérias ou combates mortais, que apenas escrevem livros sobre o Budismo Zen dentro das artes marciais enquanto estão sentadas em suas cadeiras, são mentirosos. [...] Algumas pessoas pensam que a tradição do Karate veio do budismo e que o Karate tem uma conexão com o absoluto, com espaço e o universo, mas eu não acredito nisso. (YAHARA apud LARIONOV, 2018)  
Não há mistério envolvido no estudo desta arte marcial. (NAKAYAMA, 1976, p. 11) 
Para mim, e para a maioria dos mestres que viveram no período da imposição, o “Karate” significa apenas "mãos vazias", porque ao contrário de muitas artes do Budō japonês que usam armas, o Karate - essencialmente - usa as “mãos vazias” para o combate. 
O kara que significa “vazio” [...] simboliza o fato evidente de que essa arte de autodefesa não usa armas, somente pés desguarnecidos e mãos vazias. (FUNAKOSHI, 2010, p. 47)  
Usado pela primeira vez pelo mestre de Karate [...] Hanashiro Chōmo (1869-1945) em sua publicação de 1905, Karate Kumite, esse ideograma [空] único caracterizou uma arte plebeia de autodefesa usando nada mais do que as mãos vazias para superar o adversário (MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 45).  
A expressão Karate (tem) o significado de "ter mãos ou punhos vazios". (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43) 
Mas se não havia concordância por parte dos mestres com relação ao novo nome, por que ele foi aceito? Bom, houve uma reunião realizada em 1936, onde isso foi abordado. Quem tiver interesse no contexto geral do encontro é possível acha-lo na integra aqui: “The [1936] Meeting of the Okinawan Karate Masters”. 

Resumo das argumentações dos habitantes de Okinawa:
Nós, pessoas de Okinawa, costumávamos chamá-lo de "Tō-dī" ou "Tō-de" [...]. Também chamamos de "Tī" ou "Te". (HANASHIRO; ŌTA; MIYAGI; SHIMABUKURO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)  
A maioria das pessoas de Okinawa ainda usa a palavra “Mão(s) chinesa(s)” para Karate, portanto devemos ouvir os praticantes e pesquisadores de Karate em Okinawa. (KYODA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61) 
Síntese do posicionamento dos japoneses: 
“Mão(s) chinesa(s)” [...] parecia exótico [...] algumas pessoas pensaram que esses kanji não eram apropriados nas escolas. Alguns dōjō (evitavam o) uso destes kanji [...]. Em Tóquio, a maioria dos dōjō [...] usam os kanji "Caminho da(s) mão(s) vazia(s)" para o Karate-dō [...], acho que o kanji para "Karate" deve ser "Mão(s) vazia(s)" em vez de "Mão(s) chinesa(s)" e "Karate-dō" deve ser o nome oficial. (NAKASONE apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)  
Acho que a palavra “Mão(s) vazia(s)” está correta, pois o nome “Mão(s) chinesa(s)” não tem fundamento, segundo os pesquisadores. (SATO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)  
Escrito como “Mão(s) vazia(s)” o kanji é atraente para nós que viemos de fora de Okinawa [...]. Fiquei decepcionado quando vi os kanji "Mão(s) chinesa(s)". (FURUKAWA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)  
Os kanji "Mão(s) vazia(s)" para o Karate é apropriado. [...] Mão(s) chinesa(s) para o Karate é difícil de entender. (FUKUSHIMA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)  
Não há ninguém que não goste da palavra "Mão(s) vazia(s)" [...], mas há pessoas que não gostam da palavra "Mão(s) chinesa(s)". (ŌTA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61) 
Os habitantes de Okinawa se mostram bairristas, os japoneses se posicionam claramente a favor da mudança, mas a meu ver a posição que define a questão é a de Ōta Chōfu, presidente da empresa de jornais Ryūkyū Shinpō: 
Qualquer coisa que seja popular no coração da nação [Tóquio] é habitualmente aceita em todo o país. [...] Os Okinawanos podem não estar muito feliz com isso, mas se nós somos os únicos que sobraram usando o termo Karate [唐手], quando o Karate-dō [空手道] se tornar um caminho marcial em todo o continente, temo que as pessoas no futuro não venham a conhecer as suas origens em Okinawa. Com base nesse ponto, acho que o termo Karate-dō é apropriado (ŌTA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61). 
Por isso, com base na história e cultura japoneses , é possível afirmar que o “Kara” de “Karate”, pois os fatos falam por si, é o resultado da interferência sociopolítica, sociocultural do Japão sobre Okinawa. 
Supondo que a utilização da palavra monossilábica Te fosse inconveniente, acreditava-se que seria possível o uso de um outro termo com o mesmo fim [...]. Apesar de que isto agora não seja mais possível de ser feito, é natural acreditar que com a eliminação da expressão Tō-de e a utilização da expressão Karate [...] deva continuar. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)  
Para o povo japonês o termo "Mão(s) chinesa(s)" não trazia nada em acréscimo ao pensamento nacional. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)  
A mudança o nome da prática possivelmente reflete o posicionamento político de Funakoshi e sua preocupação em ser condizente com as condições impostas [...]. Toda uma identidade das maneiras de praticar, ensinar e conceber o Karate parecem ter sido recriadas com pretensões políticas, condizentes com a nova condição de Estado-Nação. (PUCINELI, 2017, p. 66;72)  
Em suas obras, Funakoshi parece não ter a pretensão de fazer uma história do Karate. [...] O folclore pode convencer mais do que documentos justamente por não ser formalizado, sendo suscetível de alterações de acordo com as necessidades e interesses. Ou seja, é justamente o que Funakoshi parece fazer. (PUCINELI, 2017, p. 70)  
Apesar das alegações aparentemente inocentes e politicamente corretas da inadequação ou imprecisão dos antigos kanji em vista de uma moralidade recente em sua prática, as verdadeiras razões eram óbvias, [...] essa mudança na escrita do Karate foi realmente mais uma tentativa de dissociar o Karate de qualquer de seus vínculos chineses do que qualquer outra coisa [...].A contingência política é então vista como uma explicação muito mais precisa do que a retórica mística e nebulosa usada para justificar a reinvenção e renomeação de uma tradição marcial que precisava refletir suas qualidades filosóficas e de construção de caráter. (TAN, 2004, p. 183) 

O “Te” de Karate-dō 

Frequentemente chamávamos a arte simplesmente “Te”. (...) (O sentido de) Te é bastante fácil; significa “mão(s)” (...). (FUNAKOSHI, 2010, p. 45) 
A tradução apresentada por Funakoshi Gichin é uma transliteração moderna, que não leva em conta, por razões obvias, o contexto Ryūkyū/Okinawa... “Te”, na realidade, é um pouco mais que isso. 
O termo Te poderia ter o significado de "arte", "técnica", "estratégia", [...] etc., ou seja, inúmeros significados estratégico-militares [...]. Assim, o termo Te passou a representar e ter um enorme e profundo significado, sendo este incorporado aos termos marciais japoneses [...]. O termo Te era simplesmente imaginado como o Te na expressão Te-ashi, ou uma denominação feita através de escolha "instintiva", legitimada pela língua-mãe. Mesmo que possamos conjecturar [...], é certo que o Te nunca fez parte da expressão Te-ashi, sendo um substantivo inerente à própria cultura do Kenpō de Okinawa e assim deveria ser preservado [...]. Isto ainda está de acordo com o significado da denominação Te no idioma japonês reforçando as técnicas de combate nativas japonesas com aquilo que foi deixado pelos mestres ancestrais de Okinawa. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44) 

O “Dō” de Karate-dō 

O Dō é facilmente compreendido se entendermos o contexto onde este foi desenvolvido. 

Quando o Japão saiu do período feudal com o começo da restauração Meiji (Meiji Ishin) o belicismo, os Samurai, as artes da guerra, as escolas "-Jutsu", do período anterior já não faziam o menor sentido. O Japão tinha de se afastar do militarismo dos séculos anteriores e ingressar numa nova era de paz. Ou seja, a mentalidade guerreira do passado deveria evoluir e dar lugar a evolução da sociedade e artes japonesas. 

O Dō nada mais é do que uma transformação, um novo posicionamento social, com as consequências inerentes de uma evolução histórica natural. Este Dō a que se refere o Karate-dō é justamente o afastamento do Bujutsu, do "militarismo" do passado, inadequado para o Japão dos dias de hoje. 
Ouço hoje em dia que as pessoas chamam de "Karate-dō", em vez de Karate. Isso significa que as pessoas adicionaram a palavra "Dō" ao nome "Karate" por enfatizar a importância do treinamento espiritual [...]? (SHIMABUKURO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61) 
Usam a palavra "Karate-dō", que significa o cultivo da mente. (NAKASONE apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61) 
O Dō que se deve viver no Karate de hoje no contexto japonês é a formação de elementos úteis à sociedade contemporânea e com espírito de esforço e dedicação forjado nas artes do combate. Isso é o Dō a que as artes marciais se referem. 
"(O Dō) simbolizaria a identidade nacional do Japão [...]. Foi reinventado como uma ferramenta para promover o “espírito japonês”. [...] Kanō enfatizou a ideia de que (a) arte marcial era baseada em princípios e não apenas em técnicas, […] criava corpos aptos, mas seu aspecto de construção de caráter era mais valorizado. Isso criaria bons cidadãos que contribuiriam positivamente para a nação [...]. Fomentaria o espírito de auto-sacrifício e devoção à nação. (SWENNEN, 2006, p. 8-12)  
O Karate-dō não é somente a aquisição de certas habilidades defensivas, mas também o domínio da arte de ser um membro da sociedade bom e honesto. (FUNAKOSHI, 2010, p. 110) 
A realidade nua e cru é que para o “reconhecimento” do Karate no Japão a Dai Nippon Butokukai criou muitos “se isto”, “se aquilo”... o “Kara” e o “Dō” são resultados disso. 

Deixo a reflexão final para meu amigo Joséverson Goulart... 
Quer muitos gostem ou não, não há como mudar a história do Japão para se adaptar às nossas conveniências em nível de ensino de artes marciais no ocidente. Posicionamentos caricatos, alienados, de ignorância histórica japonesa [...] definitivamente não refletem a realidade e tradição naturais das artes marciais que dignificam o Japão de ontem e de hoje. O respeito pela arte que se pratica também passa pela compreensão dos fatos históricos a ela ligados [...].  
Instrutores mal informados que impingem uma treta divina no Karate deveriam parar com esta estupidez para o bem do próprio Karate, [...] Tais instrutores deveriam restringir-se ao que dominam e não inventar ou falar sobre nada que não sejam capazes de fundamentar. Um DVD, um livro ou o Youtube não faz de ninguém um monge ou um Samurai.  
O Karate deve ser praticado dentro do contexto no qual está inserido. Sem tretas, sem enganos, de forma honesta.  
[...] Assim como qualquer coisa no universo, a cultura japonesa tem o seu lado bom e o seu lado "menos bom". Existem assuntos dentro das Artes Marciais que são muito "delicados". [...] Porque envolve política! Até hoje o assunto "Okinawa" é muito delicado - mesmo nos meios diplomáticos... imagina se ia ser um ponto pacífico nas artes marciais. Fechamos os olhos e a boca e... toca o barco! Basicamente, estamos voltados para o desporto e não para uma crise internacional. (GOULART, 2011a) 
Para encerrar... 
Não há tretas transcendentes em Karate. Ou é ou não é, ou se sabe ou não se sabe. (GOULART, 2011b) 
Ainda assim, alguém pode comentar: "Mas isso tira o misticismo do Karate-dō!" Sejamos sinceros... com tanto que se tem para estudar, com tanto que se tem para praticar... o misticismo ainda faz algum sentido? 

Além disso, deixamos aqui um lembrete àqueles que são "fascinados pela transcendência": feliz ou infelizmente, o treino de uma arte marcial e sua respectiva teoria já são matérias suficientes para uma vida toda... 

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Referências

FUNAKOSHI, Gichin. Karatê-Dô, o meu modo de vida. Tradução: Euclides Luiz Calloni. 7ª edição, Editora Cultrix, São Paulo, 2010. 

GOULART, Joséverson. 09. Karate-dô e Religião. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 23 de novembro de 2011b. 

GOULART, Joséverson. 55. KARA de KARATE. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 28 de novembro de 2011. 

GOULART, Joséverson. 10. O Karate NÃO é Japonês. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 23 de novembro de 2011a. 

GOULART, Joséverson. 07. Karate e o Dô. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>Terça-feira, 22 de novembro de 2011c. 

GOULART, Joséverson. A influência do Budismo Zen nas Artes Marcais Japonesas. Disponível em: <http://groups.google.com/group/andretta-no-kenkyushitsu/>. Acesso em: 9 de Abril de 2009. 

GOULART, Joséverson. As bases religiosas e filosóficas de Karate. Disponível em: <http://groups.google.com/group/andretta-no-kenkyushitsu/>. Acesso em: 9 de Abril de 200 

LARIONOV, Oleg. Mikio Yahara: The ‘One Finishing Blow’ Concept. Karatenomichi Russian Federation. Translated by Alexander Chichvarin. Disponível em: <http://www.karatenomichi.ru/articles/interview/9.html>. Acesso em: 6 de julho de 2018. 

MABUNI, Kenwa; NAKASONE, Genwa. Invitación al Karate-do. Traducción: Toshiro Yamaguchi y Roberto Díez. Madrid: Miraguano Ediciones, 2002. 

MABUNI, Kenwa; NAKASONE, Genwa. Kōbō Kenpō - Karatedō Nyūmon. Revisão: Mabuni Ken'ei. Translated by Joséverson Goulart. Okinawa: Yōju Shōrin, Japão, 1938. 

MCCARTHY, Patrick; MCCARTHY, Yuriko. Ancient Okinawan Martial Arts Volume 1: Koryu Uchinadi. Tuttle Publishing, 2011. 

NAKAYAMA, Masatoshi. Dynamic Karate. Ward Lock Limited, London, 1976. 

NAKAYAMA, Masatoshi. O melhor do Karatê. Visão abrangente, práticas. Volume 1. Editora Cultrix, São Paulo, 2009. 

PUCINELI, Fábio Augusto. Modernização do Karate Gichin Funakoshi e as Tecnologias Políticas do Corpo. UNESP, Junho, 2017. 

SWENNEN, Filip. The creation of the myth of ‘Traditional Japanese’ Karate under the pressure of prewar nationalism. Disponível em: <http://sfdojo.be/wp-content/uploads/2014/05/Master-thesis-KUL.pdf>. Academiejaar, 2006. 

TAN, Kevin SY. Constructing a martial tradition Rethinking a popular history of Karate-Dou. Journal of Sport and Social Issues, v. 28, n. 2, p. 169-192, 2004.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 15

Onegaishimasu! 

(^_^) 

Lá vamos nós outra vez!!! 

Já conhecemos e sabemos quem é quem dentro dos dōjō. 
Sensei é "(aquele que) "nasceu antes" no Budō, "aquele que começou antes" o Budō.  
Senpai é "(aquele) “colega” (que começou) “antes de” mim, alguém “mais antigo” do que eu no dōjō.  
Kōhai é "(aquele) “colega” (que começou) “depois de” mim, alguém “mais novo” do que eu dōjō.  
E o mais importante... que "Senpai e Kōhai não são títulos individuais", mas sim "uma relação"! 
Estudei durante algum tempo em uma escola de filosofia clássica, há alguns anos, e um dos meus instrutores certa feita disse: "a ignorância é uma benção"... Muitos anos depois, entendi suas palavras de forma muito clara, pois ao ver quase todo mundo repetindo, usando e ensinando diversos conceitos sem nenhum fundamento meu coração fica apertado e meu espírito fica profundamente incomodado ao ver tanta gente sendo "enganada" por outras que seguem a falar sobre o que não sabem... A máxima "foi assim que os meus mestres disseram que era" segue plenamente vigente! 

Por falar em coisas erradas e ignorância... hoje falaremos um pouco sobre o "osu"... 

\(^_^)/ 

Porém, antes de entrar propriamente no assunto "osu" precisamos entender/retomar algumas coisas: 
  1. Devemos utilizar um Sistema de Romanização para transcrever os kanji e kana japoneses. 
  2. Em se tratando de Língua Japonesa não podemos, nem devemos, confundir "forma escrita" com "forma falada"
  3. Não podemos abordar um termo japonês sem apresentar os kanji (grafia), tradução e interpretações possíveis. 
  4. A falta de pesquisa gera erro de conceitos, traduções e interpretações. 
  5. Erros de conceitos, traduções e interpretações geram erros de instrução
  6. Erros de instrução são passados de geração em geração
  7. Hoje é simplesmente impossível determinar o número de informações erradas que estão sendo difundidas como corretas. 
  8. Nada substitui a pesquisa e o estudo das matérias relativas a arte que praticamos. 
  9. A pesquisa não é privilégio de alguns, está acessível a qualquer pessoa, com qualquer nível cultural ou técnico. 
  10. Não é vergonha não saber; vergonha é criar mitos, falsas expectativas e interpretações particulares de determinados fatos culturais ou históricos para mascarar a falta de conhecimento efetivo. 
  11. Todos querem ensinar algo, todos querem ser "Sensei", mas raros são aqueles que querem realmente aprender
Esclarecidos estes “detalhes”, vamos ao tema principal.
Como sabemos "osu" é uma saudação recorrente em muitos dōjō, sobretudo no Shōtōkan e no Kyokushin-kai. (...) Em certas escolas e traduções marciais nipônicas a expressão encontra-se ausente. É praticamente inexistente no Shitō-ryū e nunca usada nos estilos de Okinawa. No Shōtōkai também está ausente [embora se comece a assistir a uma penetração da mesma neste estilo]” (CAMARÃO, 2007).

a) A história do Osu 
A história da expressão remonta ao século XIX e a fundação do Dai Nippon Butoku-kai. [...] 
A “Associação da Virtude Marcial do Grande Japão” [...] foi fundada em 1895. [...] O objetivo da Butoku-kai era promover o Bujutsu japonês e galvanizá-los com o “espírito marcial” do imperador Kammu (que reinou entre 781-806) em uma ideologia de um espírito japonês (Wakon, 和魂), mais tarde propagandeado pelos nacionalistas japoneses como “o espírito corajoso, ousado e indomável do povo japonês” e como uma das principais doutrinas do militarismo japonês. A construção do Salão da Virtude Marcial (Butoku-den) foi concluída em 1899, perto do Santuário Heian, em Kyōto, e os ramos da Butoku-kai foram estabelecidos em todo o país. Todos os anos, em maio, o Butoku-kai realizou seu Festival de Virtude Marcial (Butoku-sai), que foi quando o Karate de Okinawa apareceu pela primeira vez no Japão. 
Em 1905, o Butoku-kai abriu um instituto de treinamento particular em Sakyō, um distrito de Kyōto. Ficou conhecido como o Dai Nippon Butoku-kai Budō Senmon Gakkō, ou a “Escola Especializada em Budō da Sociedade de Virtude Marcial do Grande Japão”. Construída e administrada pelo Butoku-kai, a escola serviu para o treinamento de instrutores de Bujutsu - principalmente Kendō e Jūdō - que eram ativos na educação escolar regular. O objetivo desta instituição era o mesmo que o da Butoku-kai, ou seja, a prática do Bujutsu e o cultivo de um espírito Samurai. 
[...] O Senmon Gakkō era considerado como um dos melhores institutos para a formação de instrutores de artes marciais no país. A admissão era concedida sem exceção apenas ao gênero masculino. Uma classificação mínima necessária em Budō também deveria ser alcançada. Em caso de falha para atingir este posto, o diploma universitário era negado. [...] Fundamentos e espírito fortes foram enfatizados [...]. 
Uma vez por mês, realizava-se uma “Reunião de Avaliação” [...]. Em caso de falhas na vida cotidiana ou em outros lugares, como não mostrar cortesia ou submissão satisfatória, eles eram fisicamente punidos. A [...] hierarquia era um assunto sério na tradição dessa escola. Os graduados da escola recebiam uma licença do estado como professores do ensino médio [...]. 
[...] O Budō, assim como o Butoku-kai como a instituição mais prestigiosa e influente, tornaram-se estreitamente associados ao ultranacionalismo e ao "imperialismo". As artes marciais japonesas cresceram durante este tempo principalmente porque eram uma engrenagem na máquina ideológica da mobilização nacional. 
Com a derrota do Japão em 1945, o Comando Geral do Supremo Comandante das Forças Aliadas dissolveu a Dai Nippon Butoku-kai e proibiu o ensino de Budō em escolas e universidades. O Senmon Gakkō foi renomeado para “Escola Especializada Kyōto - Departamento de Humanidades e Literatura”, mas fechou suas portas após a última cerimônia de formatura em janeiro de 1947. 
Foi no Senmon Gakkō onde nasceu a saudação “osu!”. É o resíduo [...] de uma linguagem masculina [...], a expressão de um Budō ideológico intimamente relacionado ao ultranacionalismo, ao militarismo e [...] (ao culto) imperial [...]. (QUAST, 2019)

b) O significado de "osu" 

A palavra "osu" é formada por dois kanji: 押忍 
  • O [押]: (fazer) "apesar de", "forçar", "empurrar", "pressionar", etc... 
  • Su [忍]: "aguentar", "suportar", "sacrificar(-se)", etc... 
Os dicionários modernos dizem que a expressão "osu" é uma "saudação usada entre amigos (homens) íntimos", "Olá!" e "Sim, senhor!".
“O termo "osu" é puro calão masculino, uma saudação militar adoptada pelos soldados da Marinha Japonesa durante a 2ª Guerra Mundial” (CAMARÃO, 2007). 
“A locução "osu" é praticamente desconhecida pela sociedade japonesa. Nasceu em círculos universitários e posteriormente se estendeu a determinadas organizações militares (...). Nem em Karate, nem em nenhuma outra arte marcial havia sido utilizada esta expressão anteriormente.” (HIROTA, 2008)
No meio militar, "osu" tinha/tem o sentido de "Sim, senhor!", obviamente, pelas ideias que os kanji abarcam, subentende-se a resposta como "esforçar-me-ei!", "farei o que me é mandado (apesar de tudo)", "irei aguentar a pressão" e assim por diante. 

No meio marcial, "osu" é usado para responder a uma solicitação ou comando de um instrutor ou superior hierárquico... com a mesma ideia "esforçar-me-ei!", "farei o que me é mandado (apesar de tudo)", "irei aguentar a pressão", ou ainda, saudar companheiros de treino (dentro do contexto correto, já mencionado).
No entanto, a locução “é, curiosamente, usada com muito mais ênfase (e em contextos errados) em dōjō ocidentais” (CAMARÃO, 2007). 

c) O uso correto de "osu" 

No contexto marcial, o uso de "osu" não está correto nas seguintes circunstâncias: 
  • Entrar e sair do dōjō; 
  • Saudar superior hierárquico. 
Contudo, "osu" é completamente válido para: 
  • Responder a uma solicitação ou comando de um instrutor ou superior hierárquico; 
  • Saudar companheiros de treino.
“O uso “excessivo” e arbitrário da expressão, sobretudo em situações coloquiais [...] é inadequado.” (CAMARÃO, 2007).

d) Romanização correta dos kanji 押忍

Como os kanji não oferecem qualquer pista a respeito de como são escritas as palavras usando o nosso alfabeto (pistas cruciais para poder fazer uma "romanização" ou transcrição fonética oficial japonesa) é necessário saber COMO os ideogramas são escritos em silabários. Portanto, devemos passar os kanji (ideogramas) para kana (silabários). Como faço isso? Hoje em dia, qualquer pessoa, com um mínimo de interesse, encontra estas informações com meia dúzia de cliques no mouse! 

Kanji: 押忍 (caracteres chineses) 
Kana/hiragana: おす (silabários) 

Quando escrita em kana, a palavra é composta por dois caracteres: おす ("O" e "SU") respectivamente. Já deixando claro qual é a transcrição fonética correta: OSU. 

Mas... (sempre tem um "mas") o que a maioria não sabe (pelos motivos já mencionados) é que o "u" final das palavras japonesas "geralmente" é mudo, ou seja, não se pronuncia

Assim, ao FALAR dizemos "OSS"... e ao ESCREVER grafamos OSU (NUNCA "OSSU", como vemos por aí)! Ou seja, mesmo que a transcrição fonética correta seja "osu", a pronúncia correta é "oss"! 

Quando utilizamos um sistema de romanização (e eles devem ser utilizados sempre em trabalhos sérios) para os kanji e para os kana japoneses a grafia da expressão "oss" e muitas outras... está errada (sabemos que esta forma está amplamente divulgada por toda a internet... mas estão erradas!).
“O errado é errado mesmo que todo mundo faça e o certo é certo, ainda que ninguém faça”. 
Acredito que agora não restem dúvidas sobre a forma correta desta palavra, tanto escrita quanto falada e, da mesma forma, sobre seu significado e utilização.


e) Osu deve ser usado obrigatoriamente?

Alguns instrutores são contra o uso do “osu”, porém o fato de simplesmente suprimi-lo não leva em consideração que este termo pode ser utilizado como saudação normal entre companheiros de treino, nem leva em consideração que pode ser uma forma mais breve de expressar entendimento ou aceitação de uma instrução (agilizando o treino em si) dentro de um dōjō.
“[...] Osu (é) uma expressão deselegante? [...] Não necessariamente. Osu faz parte da etiqueta e cultura marcial de alguns estilos de Karate-dō, o que significa que é legítimo e de bom-tom usa-lo quando se enquadrar na tradição e na prática coletiva” (CAMARÃO, 2007).
No meu caso, como instrutor de Karate-dō e Kobudō, nunca vi a necessidade de utilizar o "osu" dentro dos dōjō. No entanto, estou de acordo que a conveniência da utilização do "osu" (monossilábico) pode ser bem prática e rápida no meio de um treino. Outra questão é que a expressão "osu" denota "marcialidade" que, dependendo do instrutor, pode ser algo considerado importante.

Não vejo a expressão “osu” como algo obrigatório (pois nem mesmo no Japão o é), mas sim como algo que depende da escolha pessoal/organizacional de cada instrutor/organização.
“Se visitarmos um Dōjō onde a expressão seja usada, usemo-la, por cortesia e respeito a quem dá a aula” (CAMARÃO, 2007).
Nas minhas aulas tenho como padrão os termos "hai", "iie", "onegai-shimasu", "arigatō-gozaimasu" e "arigatō-gozaimashita".

As expressões "hai" e "iie", são "sim" e "não", respectivamente. "Onegaishimasu" é usada frequentemente no início de uma prática a dois com o sentido de "por favor, treine comigo" ou, se o companheiro for um superior hierárquico ou uma pessoa com mais experiência, poderá ter o sentido de "por favor, ensine-me". "Arigatō-gozaimasu" e "arigatō-gozaimashita" são traduzidas por "obrigado(a)" e "agradecido(a)". “Gozaimasu” e “gozaimashita” são sufixos de educação, não têm tradução, são maneiras de indicar “presente” e “passado” dos sufixos de cordialidade.


f) "Osu" é a abreviação de "onegaishimasu" ou "ohayō-gozaimasu" 

Já lemos afirmações de que "osu" seria a abreviação das expressões onegaishimasu ou ohayō-gozaimasu, mas será que há algum fundamento nestas informações que estão largamente divulgadas em livros, sites, etc? 

Segundo os autores de tais teorias, o processo se daria mais ou menos assim: 
  • "OSU [おす] = OnegaishimaSU [おねがいします]" ou ainda, 
  • "OSU [おす] = Ohayō-gozaimaSU [おはようございます]". 
Embora pareça bastante lógico, isto não está correto... porque, infelizmente, o hiragana é utilizado aqui somente para deixar claro os fonemas das palavras envolvidas na discussão. 

Em japonês correto as palavras são escritas: 
  • 押忍 (osu) 
  • お願いします (onegaishimasu) 
  • お早うございます (ohayōgozaimasu)...
... palavras que são compostas por kanji e kana (neste caso específico hiragana), fato que deixa claro que tratam-se de expressões diferentes... 

Portanto, "osu" É DIFERENTE DE "onegaishimasu" E DE "ohayō-gozaimasu". Cada uma das expressões possui seu significado e utilização própria. 

Decompondo a expressão Onegaishimasu temos: 
  • O [お]: "prefixo de educação" - não tem tradução; 
  • Negai [願い]: "pedido", "desejo"; 
  • Shimasu [します]: "sufixo de educação" - não tem tradução. 
"Onegaishimasu", literalmente significa exatamente "faça(-me) um pedido", a sua tradução, portanto, é "faça(-me) um favor" ou simplesmente "por favor". É uma expressão de cordialidade extremamente simples utilizada no dia a dia japonês. 

Analisando por partes a palavra Ohayō-gozaimasu encontramos: 
  • O [お]: "prefixo de educação" - não tem tradução; 
  • Hayō [早う]: "madrugar, levantar-se cedo, ser cedo"; 
  • Gozaimasu [ございます]: "sufixo de educação" - não tem tradução. 
Para os que afirmam que "osu" é a abreviação ou contração da palavra "ohayō-gozaimasu", vale a mesmíssima explicação dada a "onegaishimasu", com exceção que a tradução para "ohayō-gozaimasu" é "cedo" - uma expressão utilizada pelos japoneses para dar "bom dia" entre 05:00 e 10:00 horas da manhã. 

Sendo assim, de fato, a palavra "osu" não é a abreviação ou ainda, a contração de "onegaishimasu" ou "ohayōgozaimasu" como costumam afirmar muitas fontes de pesquisa. 


Conclusão

Se uma pessoa não leciona, não há qualquer problema quanto a não pesquisar coisa alguma. Mas se alguém que se intitula "instrutor", "treinador" ou "Sensei"... não pode se dar a este "luxo"... 

Em nossos dias a afirmação "foi assim que os meus mestres disseram que era" e tantas outras justificativas que advém da falta de estudo efetivo já não podem/devem ser utilizadas pelos "instrutores", "treinadores" ou "Sensei"...

Não há qualquer problema em usar o “osu”... desde que no contexto correto...

Hoje... “osu” significa “quase tudo” nos dōjō ocidentais...é “oi” e “tchau”, é “sim” e “não”, etc... quando alguém está falando o ouvinte fica... “osu”, “osu”, “osu”.. a cada término de frase... enfim...

Vou reforçar, “no contexto marcial, o uso de "osu" não está correto nas seguintes circunstâncias: entrar e sair do dōjō; e saudar superior hierárquico” e por que não está correto? Porque no contexto marcial é "Sim, senhor!"... logo o dōjō não dá ordens para precisar de resposta e um superior hierárquico ainda não te pediu nada no momento da saudação.

No entanto, “a expressão "osu" é completamente válido para responder a uma solicitação ou comando de um instrutor ou superior hierárquico” porque no dōjō quando se recebe uma ordem (instrução) não há opções de não cumpri-la e por isso "Sim, senhor!", "esforçar-me-ei!", "farei o que me é mandado (apesar de tudo)", "irei aguentar a pressão" é uma boa resposta. Para ‘saudar companheiros de treino’ é válido porque “a expressão "osu" é uma "saudação usada entre amigos (homens) íntimos".

Alguém pode argumentar: "Eu uso (falo e escrevo) 'oss', não sou japonês, e vou continuar como sempre fiz!"... sem problemas algum... ignorância é sempre uma escolha pessoal.

Denis Andretta 
Porto Alegre/RS 
09/05/2020 

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Referências

ANDRETTA, Denis Augusto Cordeiro. Portal Manabu no Karate-Do. Disponível em: <www.manabunokaratedo.esporteblog.com.br>. Acesso em 07 jul. 2009. 

CAMARÃO, M. E.. Um ‘Osu’ duro de roer. Disponível em: <http://ekarate.wordpress.com>. Acesso em: 28 de Março de 2007. 

GOULART, Joseverson. Portal Judô Fórum. Disponível em: <http://judoforum.com/blog/joseverson/>. Acesso em 15 jul 2009. 

GOULART, Joséverson. Sobre o termo ‘Osu’. Disponível em: <http://groups.msn.com/ShinseiKaiShito-RyuKarate-Do/>. Acesso em: 2 de Maio de 2008. 

HIROTA, Yoshiho. La Locución ‘Osu’. Disponível em: <http://www.karatebcn.com>. Acesso em: 2 de Maio de 2008. 

QUAST, Andreas. To “Osu”, or Not to “Osu”? The Difficult History of Osu! The Shōtōkan Times. Disponível em: <https://Shōtōkantimes.com/>. Acesso em: 11 de março de 2019.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 14

Onegaishimasu!

(^_^)

Vamos lá!

Inicio este post com uma lembrança:
“A maioria das pessoas acomoda-se às informações transmitidas de forma errada e as assume como corretas [...]. 
E sendo assim, no mundo das artes marciais japonesas, o emprego de termos japoneses sem o conhecimento efetivo do seu significado e contexto sempre levou e ainda leva alguns instrutores e praticantes a erros que poderiam ser facilmente evitados.

Aproveitando a introdução, hoje falarei sobre as palavras Senpai e Kōhai... pois ambas são um ótimo exemplo do que foi acima afirmado.

Antes de qualquer coisa vamos deixar claro Senpai e Kōhai não são títulos individuais, Senpai/Kōhai é uma relação...

Para começar, vamos ao literal:

Kanji: 先輩 
Romaji: Senpai 
Hiragana: せんぱい 
Tradução: “Sênior”, “mais velho”, “mais antigo”, etc..." 
Leitura: “sênpái”.

O termo é escrito com dois ideogramas:
  • 先 SEN [せん] (ssên): "Antes de", "primeiro que", "anterior" e 
  • 輩 PAI [ぱい] (pái): “Colega”, “companheiro”, “camarada”. 
A tradução literal deste termo é (aquele) “colega” (que começou) “antes de” mim... ou seja, a palavra é usada para designar alguém “mais antigo” do que eu... na escola, no trabalho, no grupo de atividades, etc...

Kanji: 後輩 
Romaji: Kōhai 
Hiragana: こうはい 
Tradução: “Júnior”, “mais novo”, “mais recente”, etc... 
Leitura: “côôrrái”.

A palavra é escrita com dois Kanji:
  • 後 KŌ [こう] (côô): "Depois de", "depois que", "posteriormente" e 
  • 輩 HAI [はい] (rrái): “Colega”, “companheiro”, “camarada”. 
A tradução literal desta palavra é (aquele) “colega” (que começou) “depois de” mim... ou seja, o termo é usado para indicar alguém “mais novo” do que eu... na escola, no trabalho, no grupo de atividades, etc... 

No ocidente, Senpai é dito ser, de forma errada, o estudante sênior, pois inúmeros instrutores "convencionaram" que este termo refere-se apenas aos alunos antigos dentro de um Dōjō. Normalmente, a palavra “Senpai” é usada por aqui para referir-se aos “faixas pretas” ou “estudantes seniores”. Contudo, aqueles que conhecem a cultura japonesa sabem que esta é uma concepção errada! Pois para falar em Senpai é obrigatório falar também em Kōhai... repito “Senpai/Kōhai é uma relação”

Dentro do Japão tradicional esta relação, dentro de um Dōjō, é mais conhecida como a relação “irmão mais velho / irmão mais novo”, onde o “irmão mais velho é responsável pela educação do “irmão mais novo” e assim deveria ser feito de idêntica maneira dentro das escolas de artes marciais no ocidente. 

Especificamente dentro do Karate-dō quando falamos em Senpai estamos nos referindo a um estudante antigo, designado pelo Sensei, que se torna responsável por um ou mais estudantes novos com o objetivo de ensina-los informações básicas sobre o “estilo/escola”. 

Infelizmente, este não é o caso na maioria das escolas ocidentais onde o Senpai é conhecido pelos outros alunos, mas nenhum Kōhai respectivo é encontrado… 

Assim como em qualquer parte do planeta há boas e más pessoas, também há em Karate-dō bons e maus instrutores, Sensei e Senpai. Por isso, a relação Senpai/Kōhai só será válida se: 
  • O Sensei tiver conhecimento real da arte que pratica e estiver disposto a responder às dúvidas dos Senpai sem "inventar respostas". 
Nunca esqueça que trabalhar sério implica pesquisa... e pesquisa dá muito trabalho e toma muito tempo. 
  • O Sensei conhecer as suas próprias limitações. 
Saber dizer "não sei, mas vou pesquisar e assim que possível eu respondo" não magoa ninguém, pois ninguém sabe tudo! Porém a pesquisa está ao alcance de todos... não importando o tempo de treino, a graduação, a idade, etc... 
  • O Sensei não deixar as perguntas sem respostas. 
Ou sabe ou não sabe... Se não sabe, pesquisa. 

Se estas condições forem satisfeitas, então se podem apresentar os Senpai como uma referência válida. 

Fica aqui algumas pequenas reflexões... 
Será que nós, instrutores (Sensei e Senpai), estamos dispostos a isso? Será que temos força de vontade para isso? Será que temos humildade suficiente para reconhecer nossas debilidades? 

Denis Andretta
Porto Alegre/RS
2/5/2020

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Referências:

GOULART, Joséverson. Relação Senpai/Kōhai. Disponível em Andretta No Kenkyūshitsu: <http://groups.msn.com/andrettakenkyushitsu/>. Acesso em: 04 de Setembro de 2008. 

GOULART, Joséverson. O termo Senpai. Disponível em Andretta No Kenkyūshitsu: <http://groups.msn.com/andrettakenkyushitsu/>. Acesso em: 13 de Setembro de 2008. 

GOULART, Joséverson. Senpai, Mudansha, Yūdansha, Seiza. Disponível em Joséverson no kenkyūshitsu: <http://judoforum.com/blog/joseverson>. Acesso em: 20 de Novembro de 2006. 

GOULART, Joséverson. Sensei. Disponível em: http://judoforum.com/blog/joseverson/index.php. Acesso em 20 de Novembro de 2006. 

terça-feira, 25 de junho de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 13

Onegaishimasu! 

(^_^) 


Já sabemos que o dōjō é o Lugar [onde se aprende, se pratica e se ensina] o Caminho”, é o “Lugar [onde se aprende, se pratica e se ensina] a Via... 

E também já vimos que, em nosso caso, este “Caminho”, esta "Via", específica é o próprio Karate... ou seja, um “caminho” “sem qualquer vínculo com significados transcendentes, místicos ou sobrenaturais”, um "modo de vida", um “caminho” que prepara “as pessoas para todos os aspectos da vida social” através da disciplina, do respeito e da harmonia. 

A partir de hoje falarei sobre as “personagens” do dōjō... o sensei, o senpai e o kōhai... 

Hoje, especificamente, veremos o termo “sensei”. 

Como sempre... primeiro vamos ao literal: 

Kanji: 先生 
Romaji: Sensei 
Hiragana: せんせい 
Tradução: “nascer antes”, “viver primeiro”. 
Leitura: “sênsêê”. 

Embora a palavra sensei, de forma muito genérica, possa ser traduzida como "professor" (tradução, aliás, amplamente divulgada), o termo é escrito originalmente com dois ideogramas: 
  • 先 SEN [せん] (ssên): "Antes de", "primeiro que", "anterior";
  • 生 SEI [せい] (ssêi): "Nascer", "viver". 
Assim sendo, a tradução literal deste termo pode ser interpretada como (aquele que) "nasceu antes". No entanto, quando trazemos a palavra para o mundo das artes marciais japonesas o entendimento passa a ser "aquele que começou antes".

Dentro de um ambiente controlado ou fechado como um dōjō em particular podemos, com certeza, definir "quem começou antes", quer seja por graduação ou por conhecimento pessoal, e assim, facilmente determinar quem é o "sensei".

No entanto, quando alguém coloca a palavra "sensei" antes/depois do seu próprio nome, ou ainda refere-se a si mesmo como "sensei", isso caracteriza uma falta de humildade incompatível com as artes marciais orientais.

No Japão, o termo sensei é utilizado não somente para designar professores, mas também médicos, advogados ou quaisquer outras figuras cuja característica essencial seja a autoridade.

O termo sensei, de fato, não apresenta aquela "mística" ou "transcendência" impostas por algumas pessoas que não sabem realmente a que este termo se refere.

Outro fato curioso é que em filmes e publicações no ocidente é comum encontrarmos o termo sensei escrito de muitas formas: “sansei”, “sensey”, “senshei”, etc... aqui fica clara a falta de um conhecimento efetivo sobre a língua japonesa, pois nos processos de romanização dos ideogramas e caracteres japoneses (passagem de símbolos japoneses para as letras do nosso alfabeto) esta palavra é sempre escrita como sensei. Aliás, a transcrição errada dos termos japoneses é um dos erros mais comuns em trabalhos, de todos os níveis, por aqui.

Quando se fala japonês, a pronúncia de determinados ditongos (encontros vocálicos, neste caso o “ei” final) muda ligeiramente. Este é o caso da palavra sensei que quando “falada” pronuncia-se “sênsêê”.

Infelizmente a maioria das pessoas acomoda-se às informações transmitidas de forma errada e as assume como corretas... isso é um erro grosseiro, pois questionar é a base da aprendizagem: ou sabemos ou não sabemos. O que não podemos fazer é escondermo-nos atrás de "verdades absolutas" para encobrir a nossa ignorância. 

É minha opinião, que todos os instrutores, os "sensei" são obrigados a pesquisar e saber o que ensinam... copiar e imitar é normal nos primeiros passos de qualquer arte, mas saber realmente, repito, é obrigação daqueles mais “avançados”, daqueles que ensinam.

Fica aqui uma reflexão...

Treina para si? Sem problemas em não pesquisar... ignorância a nível pessoal é uma questão de escolha. Leciona? Tua ignorância irá influenciar a todos aqueles que estiverem sob tua tutela... já não é mais algo pessoal, mas a disseminação da tua negligência. 

Desde a primeira postagem “Conversando sobre artes marciais japonesas” tenho defendido a pesquisa no meio marcial e tentado mostrar que se não entendemos alguma coisa, devemos pesquisar e procurar as respostas. 

Simples assim! 

Lembrem-se de que “não saber não é vergonha, vergonha é contentarmo-nos com o pouco que sabemos”

Para encerrar esta postagem... o termo sensei, definitivamente, não é um título e não tem absolutamente nada a ver com a cor da faixa. Aliás, muito ao contrário do senso comum, a faixa preta não dá a ninguém a capacidade para lecionar. 

Ser um sensei é uma tarefa extremamente árdua, pois exige dominar um vocabulário enorme, conhecer conceitos técnicos e filosóficos, tirar dúvidas dos alunos, ter responsabilidade, ter experiência sólida e respeito pelo conhecimento próprio e daqueles sob as suas orientações, ter conhecimento e compreensão da prática e da teoria sobre a vida e sobre as artes marciais respectivamente.

Enfim... ser sensei é uma tarefa complexa e difícil...

Denis Andretta, Porto Alegre, Rio Grande do Sul

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Referências:

GOULART, Joséverson. Relação Senpai/Kōhai. Disponível em Andretta No Kenkyūshitsu: <http://groups.msn.com/andrettakenkyushitsu/>. Acesso em: 04 de Setembro de 2008. 

GOULART, Joséverson. O termo Senpai. Disponível em Andretta No Kenkyūshitsu: <http://groups.msn.com/andrettakenkyushitsu/>. Acesso em: 13 de Setembro de 2008. 

GOULART, Joséverson. Senpai, Mudansha, Yūdansha, Seiza. Disponível em Joséverson no kenkyūshitsu: <http://judoforum.com/blog/joseverson>. Acesso em: 20 de Novembro de 2006. 

GOULART, Joséverson. Sensei. Disponível em: http://judoforum.com/blog/joseverson/index.php. Acesso em 20 de Novembro de 2006. 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 12

Onegaishimasu,

(^_^)

Falarei hoje sobre o local de treinamento e suas partes.

O nome da sala usada para o treinamento das artes marciais japonesas é chamada de dōjō.

Traduzindo literalmente os ideogramas que formam a palavra dōjō temos:
  • 道 DŌ [どう] (dô): caminho, via;
  • 場 JŌ [じょう] (djô): localização, lugar. 
Traduções literais possíveis:
  • “Caminho” + “Lugar”;
  • “Via” + “Lugar”.
Saindo do literal, mas mantendo a ideia do termo dōjō temos:
  • “Lugar [onde se pratica o] Caminho”;
  • “Lugar [onde se aprende o] Caminho”;
  • “Lugar [onde se ensina o] Caminho”.
Ou ainda:
  • “Lugar [onde se pratica a] Via”;
  • “Lugar [onde se aprende a] Via”;
  • “Lugar [onde se ensina a] Via”.
Quando procuramos o significado de dōjō, nas mais diversas fontes de pesquisas, a informação que com mais frequência encontramos é que 
“O termo foi emprestado do “Zen Budismo”, significando “lugar de iluminação”, onde os monges praticam a meditação, a concentração, a respiração, os exercícios físicos e outros mais.” (Diversos Sites Internet)
Esta explicação encontra-se em diversos Sites da Internet, muitos mesmo... enfim uma série de “copiar e colar” sem fim... Sendo assim, e na quase total ausência de uma explicação plausível, faz-se necessária aqui uma pequena abordagem sobre esta questão, afim de compreender aonde surge esta ideia e também para analisar se o sentido original da palavra está vinculado ao Karatedō[1]... ou não...

A palavra dōjō origina-se do sânscrito “Bodhimanda”, palavra que, por sua vez, é o nome dado ao lugar onde, Siddhārtha Gautama, o Buddha, alcançou a iluminação, e por isso inicialmente indicava um ‘lugar de’ prática budista.

Contudo, no Japão, por volta da Era Edo[2] (1603-1868), o termo deixou de designar apenas um ‘lugar de’ prática budista e passou também a indicar um ‘lugar de’ prática de artes marciais, entre outras coisas.

Temos, então, que ter o extremo cuidado para não nos perdermos em divagações, pois embora devido a sua origem o termo dōjō esteja vinculado a “um lugar de prática budista” e que ideia original, de fato, indique o “lugar da iluminação” (de Siddhārtha Gautama, o Buddha) em nosso caso específico este lugar (Jō) e este caminho (Dō), da palavra dōjō, apontam pura e simplesmente para um ‘lugar de’ prática do 'caminho', ou seja, nada mais é que um espaço físico, uma sala, um salão, onde se enfatiza a prática do Karate[3].

A estrutura física de um dōjō está dividido em:


上座 KAMIZA [かみざ] (cámidzá): "Assento superior";
下座 SHIMOZA [しもざ] (ximôdzá): "Assento inferior";
上席 JŌSEKI [じょうせき] (djôssêqui): "Lugar superior";
下席 SHIMOZEKI [しもぜき] (ximôdzêqui): "Lugar inferior".

A tradução do nome de cada uma das partes do dōjō praticamente define a sua função, porém para que não fique nenhuma dúvida... façamos uma pequena descrição de cada uma das partes...

O assento superior, ou kamiza, é o lugar onde se sentam o professor e seus convidados. Talvez não seja do conhecimento geral que a expressão kamiza, dentro do contexto marcial, se deve ao fato de que antigamente, nos dōjō, a parte da sala onde o mestre sentava, ficava um pouco mais elevada (estruturalmente falando) do que a sala em si, daí o termo “assento superior” (kamiza).

O assento inferior, ou shimoza, é o lugar onde os alunos sentam-se. O aluno mais graduado senta-se mais à esquerda do professor. O aluno menos graduado senta-se mais à direita do professor. Lembre-se que o professor fica de frente para turma, então as direções, direita e esquerda, mencionadas devem ser consideradas a partir desta perspectiva.

O lugar superior, ou jōseki, é o local destinado aos "professor(es) auxiliar(es)" ou, ainda para algum aluno selecionado para ajudar a demonstrar alguma técnica com o professor.

O lugar inferior, ou shimozeki, está destinado aos alunos menos graduados, e somente é usado quando não houver mais espaço no shimoza.


Em nossos dias, vemos por aí as mais diversas formações para o início das aulas. Muitas vezes a disposição dos alunos é feita de forma totalmente ilógica, como, por exemplo, quando se coloca o aluno mais graduado no lugar inferior, demonstrando claramente o desconhecimento das partes que compõem o dōjō e de suas funções.

De forma simples, e sem grande ginástica mental, praticantes com graduações superiores ficam no lugar superior (jōseki) e alunos com graduações inferiores ficam no lugar inferior (shimozeki).
“Há muito tempo atrás o mestre Aragão de Lisboa, Portugal, disse algo que faz todo o sentido: "Em Karatedō não há enganos: ou é ou não é, ou se sabe ou não se sabe." 
Tudo que se faz em Karatedō tem a sua razão de ser e, nesta mesma linha de pensamento, tudo também tem a sua explicação lógica. Contudo, muitas vezes a informação a respeito de algumas dúvidas específicas a respeito do Karatedō não se encontra acessível imediatamente, mas isso não quer dizer que a informação ou a resposta para estas dúvidas não existam.” (GOULART, 2006; 2011)
Na língua japonesa, nihongo[4], existem muitas palavras que possuem a mesma pronúncia, porém com traduções completamente diferentes. Por que estou dizendo isso? Porque quando se estuda as partes do dōjō se depara com um destes casos, que é a palavra “kamiza”.

Há dois grupos de kanji[5] que podem ser lidos “kamiza” e que tem causado muita confusão em nível de transmissão de conhecimento, são eles: 

上座 KAMIZA [かみざ] (cámidzá): "Assento superior"; e
神座 KAMIZA [かみざ] (cámidzá): "Local dos deuses". 

Fazendo uma pequena busca por informações sobre o termo “kamiza” na Internet verifiquei rapidamente que a maioria esmagadora das pessoas que tratam sobre tema, desconhecem os ideogramas e a tradução “assento superior” e, por isso, levam (ou elevam) suas teorias para o campo da mística, do divino, da transcendência... Sendo assim, e embora a palavra kamiza, dependendo dos ideogramas empregados, possa ser traduzida, de fato, como “Local dos deuses”, não é este o caso nas artes marciais...
“A base para a difusão do "misticismo" e "transcendência" no mundo marcial reside na falta de pesquisa, pois é muito mais fácil inventar uma "resposta" do que dizer "não sei, mas vou pesquisar". Pesquisar, estudar implica "trabalho" e todo o ser humano tende a usar a "lei do menor esforço". Esta “lei” não é um fenômeno recente e definitivamente não vai acabar por aqui, contudo, é necessário que saibamos sobre o que estamos falando antes de afirmar coisas que não têm qualquer fundamento.” (GOULART, 2011)
Resumindo e esclarecendo... pronúncia igual, mas ideogramas e significados diferentes... um relacionado a prática do Karatedō e o outro não. Na realidade, o termo 神座, “Local dos deuses”, tem relação com a religião Xintoísta (神道, o Shintō... "A via dos deuses").

A falta de conhecimento sobre o nihongo, os kanji e os kana[6]... sempre levou, leva e levará os desprevenidos a erros de contexto e equívocos de interpretação. É justamente devido a este problema que é “normal” vermos instrutores, professores e mestres confundindo muitos conceitos (seja por desconhecimento, acomodação ou falta de estudo mesmo) e passando a seus alunos informações equivocadas sobre muitos dos termos japoneses utilizados no Karatedō.
“No mundo das artes marciais japonesas praticadas no ocidente, a quantidade de termos japoneses utilizada é impressionante. Adicione a este fato a falta de pesquisa e têm-se alguns conceitos, traduções e interpretações erradas sendo passadas de geração em geração. 
(...) Um problema muito comum quando ocidentais vão escrever livros sobre artes marciais, como não têm conhecimento sobre ideogramas, pegam a primeira tradução que aparece e pronto, lá está uma nova tradução em uma nova publicação. 
Portanto, depende unicamente de si, instrutor de artes marciais japonesas, ensinar, orientar e instruir os seus alunos com base na sua pesquisa, na apresentação de informações fidedignas e na sua própria vivência particular. 
Não é vergonha não saber; vergonha é criar mitos, falsas expectativas, interpretações particulares de determinados fatos culturais ou históricos para mascarar a falta de conhecimento efetivo. (...) Vergonha é contentarmo-nos com o pouco que sabemos.” (GOULART, 2011)
Então, para que o dōjō seja, de fato, o “Lugar [onde se ensina o] Caminho”, no caso específico dos Karate-ka, o “Lugar [onde se ensina o] Caminho” do Karate... Temos que encará-lo com um “Lugar [onde se pratica e se aprende o] Caminho” de forma séria e correta... 

Comecemos pelo básico que é a "pesquisa (e a) apresentação de informações fidedignas".

Denis Andretta, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
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Referências:

AGUIAR, José. Karatê Shito-ryu. Os grandes mestres, os katas, entrevistas. Edição do autor, São Paulo, 2008. 1ª edição.

ARAKAKI, Hélio. Atitude Karateka para a vida. O Karate-dô no Caminho para o sucesso e a realização. Graficolor Miti/Grafiqx, Campo Grande/MS, 2009.

BERNARDO, Alexandre Pinheiro; at al. História da Educação Física: Karatedō. Rede Metodista de Educação do Sul (IPA). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007.

GOULART, Joséverson. Dōjō. Disponível em: http://judoforum.com/blog/joseverson/index.php. Acesso em 20 de Novembro de 2006.

GOULART, Joséverson. Karatedō Nyūmon: Introdução ao Caminho das Mãos Vazias. Disponível em: http://judoforum.com/blog/joseverson/index.php. Acesso em 20 de Novembro de 2006.

GOULART, Joséverson. As fases do conhecimento. Jōji Monogatari. Disponível em: http://jojimonogatari.blogspot.com. Acesso em: 27 de Novembro de 2011.

GOULART, Joséverson. 26. 道場 O Dōjō. Jōji Monogatari. Disponível em: http://jojimonogatari.blogspot.com. Acesso em: 27 de Novembro de 2011.

GOULART, Joséverson. Dōjō. Disponível em: http://groups.google.com/group/andretta-no-kenkyushitsu/. Acesso em: 2 de Fevereiro de 2011.

HERRIGEL, Eugen; A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. Editora Pensamento, São Paulo, Edição 23, 2009.

J-TALK NIHONGO. Japanese Dictionary: Termos diversos. Disponível em: http://nihongo.j-talk.com/search/index.php. Acesso em: ‎22‎ de ‎Outubro‎ de ‎2011.

J-TALK NIHONGO. Kanji Converte: Kanji Diversos. Disponível em: http://nihongo.j-talk.com/. Acesso em: ‎22‎ de ‎Outubro‎ de ‎2011.

REID, Howard; CROUCHER, Michael. O Caminho do Guerreiro. O paradoxo das artes marciais. Editora Cultrix, São Paulo, 2004.

ROMAJI.ORG. Rōmaji Translator (Translate japanese text (Kanji,Hiragana,Katakana) into Rōmaji or Hiragana). Disponível em: . Acesso em: 1 de Abril de 2009.

SOARES, José Grácio Gomes. Budo no jiten. Dicionário de Artes Marciais Japonesas. Icone Editora, São Paulo, 2007.

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Notas:

[1] Karatedō [空手道] – Via, Caminho das Mãos Vazias. 
[2] Edo-jidai [江戸時代] – Era Edo, também conhecido como Tokugawa-jidai (Era Tokugawa), é um período da história do Japão que foi governado pelos Shōgun (Generais) da família Tokugawa, desde 24 de Março de 1603 até 3 de Maio de 1868.
[3] Karate [空手] – Mãos Vazias. 
[4] Nihongo [日本語] – Língua japonesa. 
[5] Kanji [漢字] – Caracteres chineses. 
[6] Kana [仮名] – Escrita silábica japonesa.