Onegaishimasu!
(^_^)
Na minha quinta postagem, tratando do termo “Karate-dō”, escrevi:
“Não esqueça que a tradução individual de cada kanji, e da palavra como um todo, embora tenha um significado literal, sempre abarca uma “ideia”” e que para que esta ideia seja entendida a questão “contexto é fundamental.”
E complementei:
“Sendo assim, em outro momento, voltarei a este assunto para abordar estas questões.”
Então... o “outro momento” chegou! \(^_^)/
Estamos “carecas” de saber que “Karate-dō” quer dizer “Via” ou “Caminho das mãos vazias”. Embora nos últimos anos tenham aparecido algumas traduções alternativas por aí...
Porém, como para entender traduções “contexto” é fundamental... falemos um pouco sobre a história do Karate-dō a fim de entender o plano de fundo em que o assunto está inserido.
Vamos aos fatos...
Fato 1 - O Japão invade Ryūkyū em 1609. O arquipélago era um ponto estratégico e com o poderio Satsuma naquela época, era realizável.
Fato 2 - O Japão, como força invasora, proíbe naturalmente a continuação do idioma, da cultura e artes nativas de Ryūkyū, passando a obrigar o povo nativo a se "tornar japonês".
Fato 3 - O Japão anexa Ryūkyū, sob a designação "japonesa" de "Okinawa", em 1879, transformando o conjunto de ilhas em uma de suas prefeituras.
Alguns questionamentos que saltam a vista...
Sendo uma ilhota lá no meio do oceano, cuja a cultura foi suprimida à força, da para acreditar - honestamente - que os japoneses tratam o povo e a cultura de Okinawa como iguais?!
Da para acreditar que uma arte que vem "de lá daquelas ilhotas", pode ser considerada uma arte tradicional do "Grande Japão"?
Nos dias de hoje, Okinawa é uma das prefeituras mais pobres do Japão. O tratamento, talvez por coincidência, continua diferenciado, passado todos estes anos.
Não se trata de "como" foi desenvolvido o Karate, mas onde foi desenvolvido.
Todos sabem das influências chinesas, das artes nativas, etc.. Mas o assunto tabu é "como os japoneses enxergam o Karate" e este sempre foi e sempre vai ser de Okinawa (Ryūkyū).
E é por isso que o Karate não foi, não é e, acredito eu, que nunca venha ser tratado como uma arte tradicional japonesa. Porque se trata de uma questão política e não de evolução de uma arte.
Não se pode negar, por outro lado, os louváveis esforços de todos os mestres de Okinawa em promover a arte, mas no Japão de hoje, o Karate ainda é de Okinawa.
Sabe qual é o problema disso tudo? É que nenhum instrutor se dá ao trabalho de verificar a história de Ryūkyū a partir da "invasão" japonesa. Isso mesmo! Não ter medo de falar com todas as letrinhas: I-N-V-A-S-Ã-O. E por quê? Porque é muito mais fácil fechar aos olhos para alguns "detalhes históricos" quando estes estão a nosso favor do que arranjar controvérsia com as organizações "japonesas" que orientam o Karate-dō dos dias de hoje.
Basicamente coloque-se no lugar da força invasora que se considera superior e, a partir daí, tire as suas conclusões.
A “japanização” da cultura de Okinawa mostra claramente que os japoneses consideravam sua própria cultura como superior. [...] Todas as memórias do passado sobre um reino independente e sua própria cultura única tiveram que ser esquecidas. Cada marca que restou da China na cultura de Okinawa teve que ser apagada. Os cursos de chinês foram suspensos e substituídos pelos da língua japonesa. [...] A “japanização” incluiu a abolição dos hábitos tradicionais e a introdução daqueles das principais ilhas japonesas. (SWENNEN, 2006. p. 54)
O “Kara” de Karate-dō
Quando o Karate era praticado em Okinawa tinha a denominação Tō-de, que em kanji era escrito da seguinte maneira 唐手, ideogramas que mais tarde passaram a ser lidos como “Karate”.
A designação Karate, era utilizada na instrução escolar por volta dos anos [...] (1901 e 1902), escrevia-se Tō-de, mas começou-se a ler Karate. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
Não é fácil dominar a língua japonesa [...] caracteres diferentes podem ter exatamente a mesma pronúncia, e um mesmo caractere pode ter pronúncias diferentes, dependendo do uso. A expressão Karate é um exemplo excelente. [...] Há dois caracteres bem diferentes pronunciados Kara; um significa “vazio”, e o outro é o caractere chinês que se refere à dinastia Táng e que pode ser traduzido por “chinês”. (FUNAKOSHI, 2010, p. 45)
Como já vimos, os ideogramas japoneses têm três formas de leitura: On'yomi, Kun'yomi e Nanori. Portanto, a palavra Tō-de, não foge à regra.
Por quê?
- Porque a expressão está escrita com "ideogramas".
- Porque na época do início do Karate no Japão, Okinawa já era território japonês.
- Considerando os dois primeiros pontos, o Tō-de estava sob a jurisdição japonesa.
Portanto, vamos ver os ideogramas de Tō-de:
唐
- On'yomi: Tō
- Kun'yomi: Kara
- Nanori: Karo, Tan
- Tradução: Dinastia Chinesa Táng, China.
手
- On'yomi: Shu, Zu.
- Kun'yomi: Te
- Nanori: Não há
- Tradução: Mão(s).
Assim sendo, a tradução de Tō-de (唐手) era, de fato, "Mão(s) chinesa(s)" e uma das suas formas de leitura era "Karate" (唐手).
Quando o Karate foi levado de Okinawa para as ilhas principais do Japão, por Funakoshi Gichin, naturalmente, para a arte ser aceita no restante do país, aceita pela sociedade japonesa, a designação "Mão(s) chinesa(s)" estava totalmente fora de questão.
Kara (de Karate) era o antigo nome que os japoneses davam a China. Devido a este fato, os japoneses pensavam que o Karate era uma arte estrangeira. (MABUNI; NAKASONE, 2002, p. 25)
Se escrevêssemos "Nippon Budō Karate" passaria a ter o significado de "As técnicas chinesas (pertencentes ao) Budō do Japão". O que resultaria numa contradição que prejudicava pela falta de bom senso. A partir deste ponto foi necessária a alteração para os ideogramas 空手, Karate. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
Foi obrigatório, então, alterar o ideograma 唐 [Kara] para outro que retirasse o sentido "chinês" e foi assim que apareceu o ideograma 空 [Kara] "vazio" no nome da arte.
É justamente aqui que começam as "especulações" e "enganos" sobre o significado deste ideograma na palavra “Karate”, pois “Kara” também significa "céu", "a abóbada celeste", "o firmamento".
O autor da escolha do kanji e posterior mentor de uma explicação para a seleção foi Funakoshi Gichin.
A Universidade Keio constituiu um grupo de pesquisa do Karate, e eu então pude sugerir que a arte recebesse o nome de Dai Nippon Kenpō Karate-dō, utilizando o caractere para “vazio” (空). (FUNAKOSHI, 2010, p. 46)
Vamos a uma ginástica mental...
E se eu, Denis, quisesse colocar este assunto no "plano divino"?
Quem pode dizer que a tradução de “Kara” não é mesmo "céu, celestial"?... e que alguém se enganou no meio de traduções e interpretações do sentido original quando transcreveu como "vazio". Nada impede que eu também tenha razão! O correto seria, então, "Mão(s) celestiai(s)" tendo um sentido de algo muito mais divino ainda! Podendo, inclusive, ser traduzido como "Mão(s) divina(s)", sem problema algum...
Alguém, ao ler minha “ginástica mental”, pode dizer: “que teoria absurda!”
Da mesma forma que esta minha "divagação" é mais do que evidente, menos evidentes são as teorias, misticismos e afirmações que começaram a ser espalhadas, adicionando ao ideograma “Kara” um caráter "divino"... relacionado ao "Zen Budismo".
Funakoshi Gichin chega as ilhas principais do Japão e depara-se com a discriminação/não aceitação da arte das “Mão(s) chinesa(s)”, precisa resolver este impasse. Na língua japonesa, apesar de escrito como Tō-de os kanji já eram lidos como Karate há quase duas décadas. Funakoshi Gichin precisava de um novo nome para a arte e para isso busca um caractere alternativo que tirasse o sentido “chinês” do nome, assim o “vazio”, o “Kara”, aparece. O problema parece estar solucionado, porém, Funakoshi Gichin parece ter feito isso de forma isolada e foi por isso que surgiram diversas críticas a sua intervenção.
Minha sugestão provocou inicialmente explosões violentas de crítica tanto em Tóquio como em Okinawa. (FUNAKOSHI, 2010, p. 46)
O nome não foi mudado facilmente. Semana após semana, apareciam artigos nos jornais de Okinawa, escritos por especialistas de Okinawa em artes marciais, querendo saber o porquê da mudança. (NAKAYAMA, 2009, p. 131)
Sendo Funakoshi Gichin um representante... e não o representante da arte... que autoridade tinha para isso perante os demais mestres?
Devido ao abandono da utilização dos ideogramas “Karate”, o trabalho árduo dos ancestrais foi perdido. Consequentemente, nos dias de hoje o ideograma “Kara” é ainda algo pouco compreendido e deveria ser, repetidamente, alvo de maior atenção. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
Outro ponto, é que Funakoshi Gichin precisava fundamentar a mudança. Para isso, outra vez a questão pessoal (era poeta e budista) se manifesta quando sua explicação do “por que” do “Kara” recaí sobre as escrituras budistas.
Os estudantes de Karate-dō têm como meta não só aperfeiçoar a arte de sua escolha, mas também esvaziar o coração e a mente de todo desejo e vaidade terrenos. Lendo as escrituras budistas, encontramos afirmações como “shiki soku zekū” e “kū soku zeshiki”, que literalmente significam “forma e cor, tudo é vazio”, “vazio, tudo é forma e cor”. O caractere kū, que aparece nas duas admoestações e que pode também ser pronunciado kara, é em si mesmo verdade. [...] Acreditando com os budistas que é a vacuidade, o vazio, que jaz no coração de toda matéria e na verdade de toda a criação, persisti resolutamente no uso daquele caractere particular para indicar a arte marcial. (FUNAKOSHI, 2010, p. 47)
Vamos à raiz da questão...
"Vazio"?! "Budismo"?! O ideograma “Kara” só foi alterado por imposição japonesa! Originalmente, “Karate” era “Técnicas chinesas” e nada mais! A alteração foi feita apenas para ajustar o nome da arte de Okinawa às exigências da Dai Nippon Butokukai. Foi só por isso, e não para ajustar sentidos transcendentais que foi feita a alteração do ideograma. (GOULART, 2011)
Mas se foi assim, por que Funakoshi Gichin não disse isso claramente? Simples, a ideia era a continuidade da arte e não sua extinção. Imaginem quanto tempo a arte duraria se ao invés do que o mestre fez tivesse contado sobre as pressões e discriminações... tipo “desde que cheguei as ilhas principais do Japão sofro discriminação por parte dos órgãos oficiais e da sociedade japonesa por ensinar uma arte cujo os kanji são entendidos como ‘Mão(s) chinesa(s)’. Então, para tentar amenizar estas ‘pressões e discriminações’, me vi obrigado a mudar o nome da arte”.
Dúvidas até aqui?!
Caso tenha chegado até este ponto do texto, alguém com certeza pensou “Este cara está louco”... vejamos...
Na realidade, até posso estar louco... mas tem mais gente louca a meu lado (^_^)...
Nos últimos tempos o Karate [...] foi desenvolvido de uma forma extraordinária. No entanto, a publicidade fácil e enganosa tem terminado por ocultar do público a verdadeira realidade da sua prática. (MABUNI; NAKASONE, 2002. p. 25)
O Karate não se desenvolveu a partir do Budismo. (ITOSU apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 22).
O guerreiro de Okinawa mantém seu espírito tranquilo [...] “De onde vem esta fé?” O Budismo não tem ali (em Okinawa) profundas raízes como no resto do Japão. (HARAKI apud MABUNI; NAKASONE, 2002, p. 32)
Não havia na arte de Ryūkyū NENHUM significado obscuro, subentendido ou latente, nenhum significado "budista" ou transcendental fazia parte da questão e da arte originais! (GOULART, 2011)
Recentemente muitas pessoas se voltaram para o Zen e muitos livros são publicados sobre isso; no entanto, é uma farsa. [...] Claro que o Zen pode ser indicado na luta. Mas qual é o sentido do Zen? [...] Se você seguir o caminho Zen, você terá o vazio em sua mente enquanto faz Kumite. [...] sem emoções, sem pensamentos sobre passado e futuro. Isso é Zen. É por isso que as pessoas que não têm a experiência em lutas sérias ou combates mortais, que apenas escrevem livros sobre o Budismo Zen dentro das artes marciais enquanto estão sentadas em suas cadeiras, são mentirosos. [...] Algumas pessoas pensam que a tradição do Karate veio do budismo e que o Karate tem uma conexão com o absoluto, com espaço e o universo, mas eu não acredito nisso. (YAHARA apud LARIONOV, 2018)
Não há mistério envolvido no estudo desta arte marcial. (NAKAYAMA, 1976, p. 11)
Para mim, e para a maioria dos mestres que viveram no período da imposição, o “Karate” significa apenas "mãos vazias", porque ao contrário de muitas artes do Budō japonês que usam armas, o Karate - essencialmente - usa as “mãos vazias” para o combate.
O kara que significa “vazio” [...] simboliza o fato evidente de que essa arte de autodefesa não usa armas, somente pés desguarnecidos e mãos vazias. (FUNAKOSHI, 2010, p. 47)
Usado pela primeira vez pelo mestre de Karate [...] Hanashiro Chōmo (1869-1945) em sua publicação de 1905, Karate Kumite, esse ideograma [空] único caracterizou uma arte plebeia de autodefesa usando nada mais do que as mãos vazias para superar o adversário (MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 45).
A expressão Karate (tem) o significado de "ter mãos ou punhos vazios". (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43)
Mas se não havia concordância por parte dos mestres com relação ao novo nome, por que ele foi aceito? Bom, houve uma reunião realizada em 1936, onde isso foi abordado. Quem tiver interesse no contexto geral do encontro é possível acha-lo na integra aqui: “The [1936] Meeting of the Okinawan Karate Masters”.
Resumo das argumentações dos habitantes de Okinawa:
Nós, pessoas de Okinawa, costumávamos chamá-lo de "Tō-dī" ou "Tō-de" [...]. Também chamamos de "Tī" ou "Te". (HANASHIRO; ŌTA; MIYAGI; SHIMABUKURO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
A maioria das pessoas de Okinawa ainda usa a palavra “Mão(s) chinesa(s)” para Karate, portanto devemos ouvir os praticantes e pesquisadores de Karate em Okinawa. (KYODA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Síntese do posicionamento dos japoneses:
“Mão(s) chinesa(s)” [...] parecia exótico [...] algumas pessoas pensaram que esses kanji não eram apropriados nas escolas. Alguns dōjō (evitavam o) uso destes kanji [...]. Em Tóquio, a maioria dos dōjō [...] usam os kanji "Caminho da(s) mão(s) vazia(s)" para o Karate-dō [...], acho que o kanji para "Karate" deve ser "Mão(s) vazia(s)" em vez de "Mão(s) chinesa(s)" e "Karate-dō" deve ser o nome oficial. (NAKASONE apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Acho que a palavra “Mão(s) vazia(s)” está correta, pois o nome “Mão(s) chinesa(s)” não tem fundamento, segundo os pesquisadores. (SATO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Escrito como “Mão(s) vazia(s)” o kanji é atraente para nós que viemos de fora de Okinawa [...]. Fiquei decepcionado quando vi os kanji "Mão(s) chinesa(s)". (FURUKAWA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Os kanji "Mão(s) vazia(s)" para o Karate é apropriado. [...] Mão(s) chinesa(s) para o Karate é difícil de entender. (FUKUSHIMA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Não há ninguém que não goste da palavra "Mão(s) vazia(s)" [...], mas há pessoas que não gostam da palavra "Mão(s) chinesa(s)". (ŌTA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Os habitantes de Okinawa se mostram bairristas, os japoneses se posicionam claramente a favor da mudança, mas a meu ver a posição que define a questão é a de Ōta Chōfu, presidente da empresa de jornais Ryūkyū Shinpō:
Qualquer coisa que seja popular no coração da nação [Tóquio] é habitualmente aceita em todo o país. [...] Os Okinawanos podem não estar muito feliz com isso, mas se nós somos os únicos que sobraram usando o termo Karate [唐手], quando o Karate-dō [空手道] se tornar um caminho marcial em todo o continente, temo que as pessoas no futuro não venham a conhecer as suas origens em Okinawa. Com base nesse ponto, acho que o termo Karate-dō é apropriado (ŌTA apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61).
Por isso, com base na história e cultura japoneses , é possível afirmar que o “Kara” de “Karate”, pois os fatos falam por si, é o resultado da interferência sociopolítica, sociocultural do Japão sobre Okinawa.
Supondo que a utilização da palavra monossilábica Te fosse inconveniente, acreditava-se que seria possível o uso de um outro termo com o mesmo fim [...]. Apesar de que isto agora não seja mais possível de ser feito, é natural acreditar que com a eliminação da expressão Tō-de e a utilização da expressão Karate [...] deva continuar. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
Para o povo japonês o termo "Mão(s) chinesa(s)" não trazia nada em acréscimo ao pensamento nacional. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
A mudança o nome da prática possivelmente reflete o posicionamento político de Funakoshi e sua preocupação em ser condizente com as condições impostas [...]. Toda uma identidade das maneiras de praticar, ensinar e conceber o Karate parecem ter sido recriadas com pretensões políticas, condizentes com a nova condição de Estado-Nação. (PUCINELI, 2017, p. 66;72)
Em suas obras, Funakoshi parece não ter a pretensão de fazer uma história do Karate. [...] O folclore pode convencer mais do que documentos justamente por não ser formalizado, sendo suscetível de alterações de acordo com as necessidades e interesses. Ou seja, é justamente o que Funakoshi parece fazer. (PUCINELI, 2017, p. 70)
Apesar das alegações aparentemente inocentes e politicamente corretas da inadequação ou imprecisão dos antigos kanji em vista de uma moralidade recente em sua prática, as verdadeiras razões eram óbvias, [...] essa mudança na escrita do Karate foi realmente mais uma tentativa de dissociar o Karate de qualquer de seus vínculos chineses do que qualquer outra coisa [...].A contingência política é então vista como uma explicação muito mais precisa do que a retórica mística e nebulosa usada para justificar a reinvenção e renomeação de uma tradição marcial que precisava refletir suas qualidades filosóficas e de construção de caráter. (TAN, 2004, p. 183)
O “Te” de Karate-dō
Frequentemente chamávamos a arte simplesmente “Te”. (...) (O sentido de) Te é bastante fácil; significa “mão(s)” (...). (FUNAKOSHI, 2010, p. 45)
A tradução apresentada por Funakoshi Gichin é uma transliteração moderna, que não leva em conta, por razões obvias, o contexto Ryūkyū/Okinawa... “Te”, na realidade, é um pouco mais que isso.
O termo Te poderia ter o significado de "arte", "técnica", "estratégia", [...] etc., ou seja, inúmeros significados estratégico-militares [...]. Assim, o termo Te passou a representar e ter um enorme e profundo significado, sendo este incorporado aos termos marciais japoneses [...]. O termo Te era simplesmente imaginado como o Te na expressão Te-ashi, ou uma denominação feita através de escolha "instintiva", legitimada pela língua-mãe. Mesmo que possamos conjecturar [...], é certo que o Te nunca fez parte da expressão Te-ashi, sendo um substantivo inerente à própria cultura do Kenpō de Okinawa e assim deveria ser preservado [...]. Isto ainda está de acordo com o significado da denominação Te no idioma japonês reforçando as técnicas de combate nativas japonesas com aquilo que foi deixado pelos mestres ancestrais de Okinawa. (MABUNI; NAKASONE, 1938, p. 43-44)
O “Dō” de Karate-dō
O Dō é facilmente compreendido se entendermos o contexto onde este foi desenvolvido.
Quando o Japão saiu do período feudal com o começo da restauração Meiji (Meiji Ishin) o belicismo, os Samurai, as artes da guerra, as escolas "-Jutsu", do período anterior já não faziam o menor sentido. O Japão tinha de se afastar do militarismo dos séculos anteriores e ingressar numa nova era de paz. Ou seja, a mentalidade guerreira do passado deveria evoluir e dar lugar a evolução da sociedade e artes japonesas.
O Dō nada mais é do que uma transformação, um novo posicionamento social, com as consequências inerentes de uma evolução histórica natural. Este Dō a que se refere o Karate-dō é justamente o afastamento do Bujutsu, do "militarismo" do passado, inadequado para o Japão dos dias de hoje.
Ouço hoje em dia que as pessoas chamam de "Karate-dō", em vez de Karate. Isso significa que as pessoas adicionaram a palavra "Dō" ao nome "Karate" por enfatizar a importância do treinamento espiritual [...]? (SHIMABUKURO apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
Usam a palavra "Karate-dō", que significa o cultivo da mente. (NAKASONE apud MCCARTHY; MCCARTHY, 2011, p. 60-61)
O Dō que se deve viver no Karate de hoje no contexto japonês é a formação de elementos úteis à sociedade contemporânea e com espírito de esforço e dedicação forjado nas artes do combate. Isso é o Dō a que as artes marciais se referem.
"(O Dō) simbolizaria a identidade nacional do Japão [...]. Foi reinventado como uma ferramenta para promover o “espírito japonês”. [...] Kanō enfatizou a ideia de que (a) arte marcial era baseada em princípios e não apenas em técnicas, […] criava corpos aptos, mas seu aspecto de construção de caráter era mais valorizado. Isso criaria bons cidadãos que contribuiriam positivamente para a nação [...]. Fomentaria o espírito de auto-sacrifício e devoção à nação. (SWENNEN, 2006, p. 8-12)
O Karate-dō não é somente a aquisição de certas habilidades defensivas, mas também o domínio da arte de ser um membro da sociedade bom e honesto. (FUNAKOSHI, 2010, p. 110)
A realidade nua e cru é que para o “reconhecimento” do Karate no Japão a Dai Nippon Butokukai criou muitos “se isto”, “se aquilo”... o “Kara” e o “Dō” são resultados disso.
Deixo a reflexão final para meu amigo Joséverson Goulart...
Quer muitos gostem ou não, não há como mudar a história do Japão para se adaptar às nossas conveniências em nível de ensino de artes marciais no ocidente. Posicionamentos caricatos, alienados, de ignorância histórica japonesa [...] definitivamente não refletem a realidade e tradição naturais das artes marciais que dignificam o Japão de ontem e de hoje. O respeito pela arte que se pratica também passa pela compreensão dos fatos históricos a ela ligados [...].
Instrutores mal informados que impingem uma treta divina no Karate deveriam parar com esta estupidez para o bem do próprio Karate, [...] Tais instrutores deveriam restringir-se ao que dominam e não inventar ou falar sobre nada que não sejam capazes de fundamentar. Um DVD, um livro ou o Youtube não faz de ninguém um monge ou um Samurai.
O Karate deve ser praticado dentro do contexto no qual está inserido. Sem tretas, sem enganos, de forma honesta.
[...] Assim como qualquer coisa no universo, a cultura japonesa tem o seu lado bom e o seu lado "menos bom". Existem assuntos dentro das Artes Marciais que são muito "delicados". [...] Porque envolve política! Até hoje o assunto "Okinawa" é muito delicado - mesmo nos meios diplomáticos... imagina se ia ser um ponto pacífico nas artes marciais. Fechamos os olhos e a boca e... toca o barco! Basicamente, estamos voltados para o desporto e não para uma crise internacional. (GOULART, 2011a)
Para encerrar...
Não há tretas transcendentes em Karate. Ou é ou não é, ou se sabe ou não se sabe. (GOULART, 2011b)
Ainda assim, alguém pode comentar: "Mas isso tira o misticismo do Karate-dō!" Sejamos sinceros... com tanto que se tem para estudar, com tanto que se tem para praticar... o misticismo ainda faz algum sentido?
Além disso, deixamos aqui um lembrete àqueles que são "fascinados pela transcendência": feliz ou infelizmente, o treino de uma arte marcial e sua respectiva teoria já são matérias suficientes para uma vida toda...
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Referências:
FUNAKOSHI, Gichin. Karatê-Dô, o meu modo de vida. Tradução: Euclides Luiz Calloni. 7ª edição, Editora Cultrix, São Paulo, 2010.
GOULART, Joséverson. 09. Karate-dô e Religião. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 23 de novembro de 2011b.
GOULART, Joséverson. 55. KARA de KARATE. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 28 de novembro de 2011.
GOULART, Joséverson. 10. O Karate NÃO é Japonês. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>. Quarta-feira, 23 de novembro de 2011a.
GOULART, Joséverson. 07. Karate e o Dô. Disponível em: <http://jojimonogatari.blogspot.com.br>Terça-feira, 22 de novembro de 2011c.
GOULART, Joséverson. A influência do Budismo Zen nas Artes Marcais Japonesas. Disponível em: <http://groups.google.com/group/andretta-no-kenkyushitsu/>. Acesso em: 9 de Abril de 2009.
GOULART, Joséverson. As bases religiosas e filosóficas de Karate. Disponível em: <http://groups.google.com/group/andretta-no-kenkyushitsu/>. Acesso em: 9 de Abril de 200
LARIONOV, Oleg. Mikio Yahara: The ‘One Finishing Blow’ Concept. Karatenomichi Russian Federation. Translated by Alexander Chichvarin. Disponível em: <http://www.karatenomichi.ru/articles/interview/9.html>. Acesso em: 6 de julho de 2018.
MABUNI, Kenwa; NAKASONE, Genwa. Invitación al Karate-do. Traducción: Toshiro Yamaguchi y Roberto Díez. Madrid: Miraguano Ediciones, 2002.
MABUNI, Kenwa; NAKASONE, Genwa. Kōbō Kenpō - Karatedō Nyūmon. Revisão: Mabuni Ken'ei. Translated by Joséverson Goulart. Okinawa: Yōju Shōrin, Japão, 1938.
MCCARTHY, Patrick; MCCARTHY, Yuriko. Ancient Okinawan Martial Arts Volume 1: Koryu Uchinadi. Tuttle Publishing, 2011.
NAKAYAMA, Masatoshi. Dynamic Karate. Ward Lock Limited, London, 1976.
NAKAYAMA, Masatoshi. O melhor do Karatê. Visão abrangente, práticas. Volume 1. Editora Cultrix, São Paulo, 2009.
PUCINELI, Fábio Augusto. Modernização do Karate Gichin Funakoshi e as Tecnologias Políticas do Corpo. UNESP, Junho, 2017.
SWENNEN, Filip. The creation of the myth of ‘Traditional Japanese’ Karate under the pressure of prewar nationalism. Disponível em: <http://sfdojo.be/wp-content/uploads/2014/05/Master-thesis-KUL.pdf>. Academiejaar, 2006.
TAN, Kevin SY. Constructing a martial tradition Rethinking a popular history of Karate-Dou. Journal of Sport and Social Issues, v. 28, n. 2, p. 169-192, 2004.