terça-feira, 23 de abril de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 9

Onegaishimasu!

(^_^)

Sempre é bom relembrar...

Bujutsu...
“... denota treinamento técnico realizado nas antigas escolas japonesas (Koryū) de artes marciais destinado a “vencer/matar outro(s) homem(ns) no campo de batalha”.
Enquanto, Budō...
“... implica em “criar elementos úteis à sociedade com uma retidão marcial”.
Ainda para reforçar a memória,
“usar o termo '-jutsu' para designar qualquer arte marcial praticada em nossos dias é algo completamente fora de contexto histórico”.
Então senhores, sem muita reflexão, dá para responder de “bate-pronto” o que praticamos nos dias de hoje!

Ah! Quase esqueço...
“Dō, a “via”, o “caminho”, (...) significa (...) "modo de vida" (...). Expressa que (...) as artes marciais japonesas preparam as pessoas para todos os aspectos da vida social e não apenas para a guerra no campo de batalha.”
Enfim, as “Jutsu” e sua filosofia já não são vigentes, o “” segue sendo importante...

E por falar em “”, acredito ser interessante entender as suas divisões (embora nem sempre isso aconteça).

está dividido em “Ryū” e “Ha”... e é trabalhado e difundido pelas “Kan” e “Kai”. Vamos analisar e entender cada um destes novos termos...

Ryū nada mais é do que formas distintas de pensar e praticar o .

Se pegarmos o Karatedō como exemplo, teríamos como Ryū, ou correntes, vulgarmente traduzido como “estilos”, o Gōjūryū[1], o Shitōryū[2], o Wadōryū[3], o Shōrinryū[4], Shōtōkanryū[5], etc... 

De forma simples... o conceito origina o conceito Ryū: 道 -> 流.

Kanji: 流
Kana: りゅう
Rōmaji: Ryuu
Hepburn: Ryū

Kanji que é traduzido como:

流 RYŪ [りゅう] (riúú): “corrente”, “estilo de”, “método de”, “maneira de”.

Como a influência pessoal dentro de tudo que fazemos está sempre presente, muitas vezes estas interpretações pessoais geram alterações nos Ryū. Sendo assim, a estas visões particulares, sobre determinada corrente, é o que se conhece por “Ha”.

O conceito Ryū origina o conceito Ha: 流 -> 派.

Kanji: 派
Kana: は
Rōmaji: Ha
Hepburn: Ha

Ideograma que é traduzido como:

派 HA [は] (rá): “grupo”, “facção”, “escola”.

Kan (antigo "Kwan") se refere as escolas originais mais antigas (como o Shōtōkan[6], por exemplo).

Kanji: 館
Kana: かん
Rōmaji: Kan
Hepburn: Kan

Kanji que é traduzido como:

館 KAN [かん] (cân): “casa”, “construção”, “prédio”.

Por volta de 1940 este termo, Kan, foi ampliado para Kai, devido a expansão das diversas escolas (Kan) que se reuniam em associações (Kai) para trabalhar na divulgação dos diversos estilos (Ryū e Ha).

Kanji: 会
Kana: かい
Rōmaji: Kai
Hepburn: Kai

Ideograma que é traduzido como:

会 KAI [かい] (cái): “associação”, “sociedade”, “clube”.

De uma forma geral, os propósitos de Kan ou Kai eram/são administrar as diretivas de um sistema (corrente/estilo/Ryū), delegar representantes, determinar procedimentos, gerar "standards"[7], reconhecer graduações e emitir Menjō[8]

Sendo assim, podemos dizer que Kan e Kai estão diretamente conectados aos Ryū e aos Ha.

Nota Importante:
Em livros antigos japoneses sobre Artes marciais era (e é) comum encontrar Kan escrito como Kwan, o mesmo ocorre para Kai, frequentemente escrito como Kwai. Porém, na língua japonesa atual estas palavras são escritas Kan e Kai.
Pontos a considerar:

  1. Nem sempre é dividido, não vemos Ryū ou Ha dentro do Jūdō, por exemplo.
  2. O termo Sōke[9] está diretamente ligado aos antigos Ryū ou "famílias", portanto utiliza-lo para designar alguém que não seja o líder de uma família de “Tradição Guerreira” é errado.

--------
Notas:

[1] 剛柔流 [ごうじゅうりゅう] Gōjūryū (gôô-djúú-riúú) Estilo suave e forte. Gōjūryū é o estilo de Karatedō desenvolvido por Chōjun Miyagi (1888-1953). 

[2] 糸東流 [しとうりゅう] Shitōryū (xi-tôô-ríúú) Estilo de Itosu e Higaonna. Shitōryū é o estilo de Karatedō desenvolvido por Kenwa Mabuni (1889-1952).

[3] 和道流 [わどうりゅう] Wadōryū (úá-dô-ríúú) “Estilo do Caminho da Harmonia. Wadōryū é o estilo de Karatedō desenvolvido por Hironori Ōtsuka (1892-1982). 

[4] 小林流 [しょうりんりゅう] Shōrinryū (xôô-rin-riúú) Estilo Shàolín. Shōrinryū é o estilo de Karate desenvolvido por Sōkon Matsumura.

[5] 松濤館流 [しょうとうかんりゅう] Shōtōkanryū (xôô-tôô-cán-riúú) Estilo da Casa de Shōtō. Shōtōkanryū é o estilo de Karatedō desenvolvido por Gichin Funakoshi (1868-1957). Shōtō [ondas nos pinheiros] era o pseudônimo utilizado por Funakoshi para assinar seus poemas). 

[6] É muito frequente ver escrito a expressão Shōtōkan-ryū quando se referindo ao estilo. Uma vez que o conceito Kan engloba o significado de Ryū, parece ser apenas uma utilização redundante. 

[7] Standards - padrões, modelos. 

[8] 免状 [めんじょう] Menjō (mên-djôô) "certificado(s)". 

[9] 宗家 [そうけ] Sōke (sôô-quê) "chefe de uma família ou clã", "fundador de algum estilo (antigo) de arte marcial".

--------

Denis Andretta, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Conversando sobre artes marciais japonesas - Parte 8

Onegaishimasu!

(^_^)

O que tem em comum o Karatedō, o Kobudō e o Iaidō?

Quem respondeu todas são “Budō”, ou seja, todas são “vias marciais”... está coberto de razão! Da mesma forma quem disse todas são “”, ou seja, todas são “vias”... “caminhos”... também acertou! 

Para entender o significado de “Budō” e, por consequência, do “” em si, é necessário conhecer um pouco da história das artes marciais japonesas e sua evolução.

No Japão antigo o termo utilizado para designar as artes marciais era Bujutsu. Atualmente a expressão Budō é utilizada para este fim.

Vejamos ambas as palavras e suas respectivas traduções:

Kanji: 武術
Kana: ぶじゅつ
Rōmaji: Bujutsu
Hepburn: Bujutsu

武 BU [ぶ] (bú): “guerra(s)”, “militar(res)”, “marcial(ais)”;
術 JUTSU [じゅつ] (djútsú): “arte(s)”, “técnica(s)”.

Kanji: 武道
Kana: ぶどう
Rōmaji: Budou
Hepburn: Budō

武 BU [ぶ] (bú): “guerra(s)”, “militar(res)”, “marcial(ais)”;
道 DŌ [どう] (dôô): “via(s)”, “caminho(s)”.

Sendo assim, temos:

武術 BUJUTSU [ぶじゅつ] (búdjútsú): Artes de Guerra, Artes marciais, Artes Militares;
武道 BUDŌ [ぶどう] (búdôô): Vias Marciais, Caminhos Marciais.

Os ideogramas para Bujutsu são originários da China, onde são conhecidos (lidos) como Wǔ-shù.

Analisando e traduzindo os ideogramas chineses que compõe a palavra Wǔ-shù, temos:

武 : guerreiro, militar, marcial, cavalaria, armas; 
術 Shù: técnica, habilidade, média(s), arte(s). 

Ou seja, “Arte(s) Marcial(ais)”.

, por sua vez, é composto por outros dois ideogramas:

戈 Gē - alabardas, machados, armas.
止 Zhǐ - parar, deter.

Ideogramas que expressam a ideia de “deter as armas" (do inimigo). Então, por "arte militar" os orientais entendem "uma forma de parar as armas dos inimigos" ou "uma forma de parar um combate ou hostilidades".

Ou seja, a "arte marcial oriental", visa estar preparado para usar o poder bélico para manter a paz social. 

Voltando ao contexto japonês, quando falo em Bujutsu, estou dizendo que é um termo que designa artes marciais japonesas “tradicionais”, ou seja, estou falando nas 18 artes marciais, nas Bugei Jūhappan, já mencionadas em uma postagem anterior e que no Japão também são referidas como “Artes Nacionais”:

No ocidente, dividimos nosso calendário entre antes e depois de Cristo. Da mesma forma, as práticas marciais japonesas podem ser divididas em antes e depois da Era Meiji.

Em 1868, quando termina a Era Edo e começa a Era Meiji, acontece a “Restauração Meiji” (Meiji-ishin), onde o governo redireciona todas as Bujutsu, modificando-as para Budō.

Portanto, todas as artes marciais japonesas, que até então eram conhecidas como Koryū Bujutsu (“Escolas Antigas de Artes Marciais”) passaram a ser chamadas Gendai Budō (“Vias Marciais Modernas”). 

Portanto, falar em Budō é falar também em “Gendai” expressão que é utilizada para designar algo "moderno, "novo"... algo usado para marcar uma nova forma de pensamento.

Sendo assim, Bujutsu que denotava treinamento técnico realizado nas antigas escolas japonesas de artes marciais destinado a “vencer/matar outro(s) homem(ns) no campo de batalha"... passa a Budō que, agora, implica em “criar elementos úteis à sociedade com uma retidão marcial”... Esta mudança de mentalidade surge com Kanō Jigorō, quando da elaboração do Jūdō, e acaba por transformar-se no Budō em si.
"(O Budō) simbolizaria a identidade nacional do Japão. Entre esses Budō, o Jūdō foi o primeiro. [...] O Budō foi reinventado como uma ferramenta para promover o “espírito japonês”. [...] Kanō enfatizou a ideia de que essa nova arte marcial era baseada em princípios e não apenas em técnicas, (introduzindo) muitas inovações para torná-lo mais atraente para o público em geral. [...] Os demais Budō logo seguiram o exemplo do Jūdō e adotaram essas mudanças. [...] O Jūdō criava corpos aptos, mas seu aspecto de construção de caráter era mais valorizado. Isso criaria bons cidadãos que contribuiriam positivamente para a nação. [...] A Dai Nippon Butoku-kai [...], institucionalizou e desenvolveu a ideologia do Budō. [...] A formação em Budō nas escolas fomentaria o espírito de auto-sacrifício e devoção à nação. [...] Depois da (Segunda Guerra Mundial), o Budō tornou-se “esportivo”. (SWENNEN, 2006, p. 8-12)
Sendo assim, usar o termo Bujutsu (na realidade qualquer "-jutsu") para designar qualquer arte marcial praticada em nossos dias é algo completamente fora de contexto histórico, pois vale relembrar:
“Em 1868, quando termina a Era Edo e começa a Era Meiji (...) o governo Meiji redireciona todas as Bujutsu tradicionais, modificando-as para Budō. Portanto, todas as artes marciais japonesas passaram a ser chamadas Gendai Budō (...).
Para que se entenda melhor a mudança de Bujutsu para Budō, transcrevo uma explicação que me parece bastante esclarecedora feita por Goulart (2008):
“(...) Criadas para matar outras pessoas, o objetivo principal das “Bujutsu” ("Artes marciais") era vencer no campo de batalha, matar o inimigo ou causar o maior dano possível ao oponente. Inúmeras escolas desenvolveram as suas técnicas (“Jutsu”), definiram os seus sistemas, deixando os seus conhecimentos para a geração futura através de representantes ou de documentos escritos. 
(...) Naturalmente, ninguém, nenhum país pode manter-se em guerra constantemente; as pessoas, as culturas e ideias evoluem. E isso aconteceu também ao Japão. As guerras civis, o Sengoku-jidai, acabaram e não havia mais razão para manter um governo militar no Japão. 
Restaurado o poder do Imperador japonês na Era Meiji, a classe Samurai foi extinta! As Koryū Bujutsu acabaram! As Gendai Budō começaram! (Isto é muito importante no contexto das artes marciais japonesas.) 
(...) Budō literalmente significa "Vias Marciais", mas é também uma forma de dizer: "Não estamos em guerra, mas preservamos a nossa identidade guerreira". Então as escolas Dō substituíram as velhas escolas Jutsu, dando maior relevância ao ambiente social japonês. Os nomes antigos foram adaptados para representar a evolução das artes marciais japonesas.  
Assim, o Iaidō substituiu o velho Iaijutsu, o Kendō substituiu o velho Kenjutsu, o Jūdō substituiu o velho Jūjutsu, e assim por diante.  
O Karate, por sua vez, não sendo uma arte marcial japonesa antiga (Koryū Bujutsu), e tendo chegado ao Japão bem depois de todo este processo, simplesmente adicionou o sufixo "Dō" para seguir a mesma evolução e filosofia, tornando-se Karatedō.” (GOULART, 2008)
Alguns comentários que me parecem pertinentes...

Não há uma data específica para a transição das Bujutsu em Budō. O que podemos “especular” é que teria provavelmente ocorrido no final do xogunato Tokugawa e princípio da Era Meiji (século XIX).

Podemos afirmar que esta transformação das artes antigas em artes modernas é uma consequência natural de uma mudança de mentalidade governamental moderna, afastando-se do sistema de governo anterior.

A eliminação das classes sociais antigas e, posteriormente, popularização de atividades que outrora eram exclusivas dos Samurai deram um novo impulso e nova perspectiva à prática marcial japonesa, hoje difundida mundialmente.

Diferente das artes marciais japonesas que foram usadas nos campos de batalha (Koryū Bujutsu), onde a unificação do Japão foi inequivocamente decidida, as vias marciais modernas (Gendai Budō) passam a se adaptar a uma sociedade de paz, harmonia e desenvolvimento nacionais.

Note-se que todos os nomes: Karatedō, Kobudō, Iaidō e Budō... possuem ao sufixo “”...

Kanji: 道
Kana: どう
Rōmaji: Dou
Hepburn:

Ideograma que é traduzido como:

道 DŌ [どう] (dôô): “via(s)”, “caminho(s)”.

Mas o que esta "via", ou "caminho" significa?

Muito se diz sobre a “mística” do ideograma , a respeito da “via”, do “caminho”, mas, como disse anteriormente, esta alteração de sufixos (de “-Jutsu” para “-”) é uma consequência natural da evolução da própria sociedade japonesa, sem qualquer vínculo com significados transcendentes, místicos ou sobrenaturais.

Na realidade o , a “via”, o “caminho”, dentro do contexto em que surgiu, significa simplesmente um novo "modo de vida" e nada mais. É uma busca por "orgulho pessoal e espírito nacional". O simplesmente expressa que agora, a partir deste ponto da história japonesa, as artes marciais japonesas preparam as pessoas para todos os aspectos da vida social e não apenas para a guerra no campo de batalha.

Enfatizo, outra vez:
"[...] O Budō foi reinventado como uma ferramenta para promover o “espírito japonês”. [...] Kanō enfatizou a ideia de que essa nova arte marcial era baseada em princípios e não apenas em técnicas, [...] seu aspecto de construção de caráter era mais valorizado. [...] A formação em Budō [...] fomentaria o espírito de auto sacrifício e devoção [...]. Isso criaria bons cidadãos que contribuiriam positivamente para a nação [...].” (SWENNEN, 2006, p. 8-12)
Pode haver outras interpretações mais “românticas” para as palavras Budō e Dō? Claro que sim! Mas estou inclinado a ser mais racional (coisa de gente “insensível” talvez...), e prefiro levar em conta o contexto histórico e os acontecimentos sociopolíticos que originaram todo este processo.

Denis Andretta, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.